O sucesso da guerra cultural bolsonarista significa o fracasso do governo e leva o país ao caos

O sucesso da guerra cultural bolsonarista leva ao fracasso do seu governo. Este é o paradoxo que deve ser explorado até as eleições de 2022, segundo o historiador e professor de Literatura Comparada João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), autor do recém-lançado livro “Guerra Cultural e retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós politico” (Editora Caminhos).

Professor de Literatura João Cezar de Castro Rocha

A guerra cultural, alimentada pela retórica do ódio, leva à paralisia da administração pública, ao caos social e,  finalmente, ao que o autor denomina de analfabetismo ideológico, ou seja, negação da realidade e o desprezo pela ciência que caracterizam a mentalidade bolsonarista.

A retórica do ódio é uma técnica discursiva ensinada nas últimas décadas por Olavo de Carvalho. O professor Rocha, que em tempos normais dedica-se ao ensino de Shakespeare e Machado de Assis, passou boa parte de seu tempo de pandemia, em 2020, à missão insalubre e paciente de investigar os livros do guru de Jair Messias Bolsonaro e de seus filhos, além de analisar websites, blogs, vídeos e documentários da extrema-direita bolsonarista.

O professor levantou uma série de documentos inéditos ou que nunca haviam sido valorizados porque eram lidos apenas no plano do conteúdo e não na sua estrutura discursiva.  O resultado foi um ensaio escrito em prosa literária no qual Rocha suscita um debate com sociedade sobre a forma de superar os impasses criados pelo movimento bolsonarista e sua instrumentalização do ressentimento.

O objetivo do autor foi propor uma linguagem, com conceitos novos, que seja capaz de iluminar os mecanismos do curta-circuito do cenário político brasileiro. Ele constata que a maior parte das críticas feitas à extrema direita são de conteúdo.

 “O que eu tento fazer é uma abordagem formal da estrutura discursiva da extrema direita para que nós de fato entendamos e enfrentamos o problema. Precisamos passar da caricatura para a caracterização do bolsonarismo”, afirma o autor.

O vídeo do ex-policial Daniel Silveira é uma metáfora de linchamento

Um exemplo da retórica do ódio é posterior à publicação do livro: o vídeo de 19 minutos e 9 segundos de Daniel Silveira, o ex-policial militar bolsonarista que foi eleito deputado federal pelo PSL do Rio de Janeiro. Silveira ataca os ministros do Supremo Tribunal Federal e faz uma apologia do AI-5 e da ditadura.

“O que vimos no vídeo é a guerra cultural na acepção bolsonarista, a promoção da violência simbólica e física. É um projeto claro, a forma do Bolsonarismo é o golpe. Para o bolsonarismo só há eu e os meus e todo o resto é apenas o inimigo a ser eliminado”, opina.

 O impulso de eliminação do adversário – explica ele – é um traço definidor da mentalidade bolsonarista, que

não procura debater alternativas de governo, mas disputar a “essência” da sociedade.

O acadêmico ressalta que as metáforas implícitas no vídeo são a do linchamento. Nesse ponto, ele faz uma alusão ao momento em que Silveira diz que imagina

com frequência os ministros apanhando na rua.  “A espiral da violência verbal no vídeo só sobe. A metáfora implícita usada por Silveira no vídeo é a do linchamento. Na história da humanidade a forma mais primitiva da organização da sociedade é o mecanismo do bode expiatório, é o linchamento”, diz.

Todos os momentos mais terríveis de perseguição e assassinatos em massa na história são precedidos – a não ser em casos de guerra – por alguns anos de violência simbólica crescente, lembra o professor. Ele cita dois exemplos: o aviltamento da condição judaica na Alemanha antes do Holocausto, e o genocídio em Ruanda. Neste último caso, houve uma campanha sistemática na mídia de difamação e violência simbólica contra os tutsis e os hutus moderados antes do genocídio.

“O genocídio de Ruanda não teria sido possível se a violência simbólica não tivesse reduzido o outro a um nada antes. A função da retórica do ódio na extrema direita é reduzir o outro a um inimigo que precisa ser eliminado. É isso o que eu  vi no vídeo de Daniel Silveira”, conclui o acadêmico, que dedica um capítulo de seu livro para explicar a dintinção entre discurso de ódio e retórica de ódio.

 “Sentimos um incômodo quando estamos na presença do discurso do ódio, mas é muito difícil defini-lo. Já a retórica do ódio é uma técnica discursiva que pode ser ensinada e que adapta a linguagem para o público que se deseja alcançar. O primeiro passo da retórica do ódio é desqualificar o outro a ponto de transformá-lo em um nada”, distingue.

Há um momento da violência em que não usamos mais da violência, mas a violência nos usa, lembra o professor. “Há um gatilho. Ao ser acionado, a violência aumenta e nunca retrocede. Pelo contrário, essa espiral somente sobe, não consegue descer”, diz. 

A violência é potencializada pela simultaneidade das redes sociais

O sonho da simultaneidade oferecido pelas redes sociais potencializa a violência porque não tem intermediação. “A grande novidade do universo digital é a simultaneidade, e não, como muitos afirmam, o excesso de informações. Com a simultaneidade, pela primeira vez na históra, um fato ocorre, é transmitido durante a sua ocorrência, e é recepcionado no instante em que ele ocorre. A recepção pode alterar o próprio acontecimento do fato”, observou.

O cenário brasileiro não está dissociado das guerras culturais da extrema direita, especialmente a dos Estados Unidos. Lá, a extrema direita deu as caras a partir do final da década de 80, como uma reação à contracultura da década de 60,

quando houve um processo de relativização das noções de família, arte, educação, lei e política.

Em seu livro, Rocha cita uma obra que representou um marco na definição das guerras culturais do mundo contemporâneo: “Culture Wars: The Struggle to define America” (1991), de James Davison Hunter. Esse livro caracterizou intelectualmente o fenômeno articulado ao longo de décadas.

O professor da UERJ ressalta, no entanto, que guerras culturais como disputas de visões de mundo contrárias, existem no Ocidente desde a modernidade. Para explicar isso, ele volta lá atrás, a Luis de Camões e à França do século 17.

“Eu mostro que há uma acepção de guerra cultural que é perfeitamente válida, em que as pessoas confrontam suas ideias de mundo e suas concepções de tempo. Isso vai acontecer sempre. Mas não é sobre isso que estamos falando agora”, observou. Em seu livro, o professor se concentrana peculiaridade brasileira.

Olavo de Cravalho: a primeira perna do  tripé da mentalidade bolsonarista

Para caracterizar a mentalidade bolsonarista, ele explica o tripé que sustenta a sua guerra cultural. O primeiro vértice do tripé é o sistema de crenças de Olavo de Carvalho e suas “receitas” de manipulação mental coletiva favorecidas pela tecnologia da comunicação digital.

Segundo o professor, esse poderoso sistema de crenças “conferiu inteligibilidade aos delírios usuais da militância bolsonarista” . Rocha, que analisou as obras de Carvalho lançadas nos anos 90, adverte que não se deve ignorar a contribuição de Olavo de Carvalho. “Caso contrário, dificilmente entenderemos o Brasil contemporâneo, especialmente a fidelidade canina ao bolsonarismo, mesmo diante de evidências claras de seu fracasso”, adverte.

No livro, ele resume assim a produção olavista:  “Reúna anticomunismo paranoico com uma ideia mofada de alta cultura, acrescente teorias conspiratórias de dominação mundial com atribuição raivosa de analfabetismo funcional para todo aquele que discorde do ‘seu mestre mandou’, associe a lógica da refutação ao emprego consciente do mecanismo do bode expiatório, relacione a retórica do ódio com palavras de baixo calão e, se ainda assim houver algum contratempo, o mágico tira da cartola uma arrojada tentativa de tomada do poder — como reza o subtítulo-manifesto de Orvi”.

Assim, a  ascensão da direita é anterior à emergência do bolsonarismo e favoreceu a sua chance de êxito. “O bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita. Pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde  meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias”, constata. 

O ex-capitão havia sido reformado em 1988 para não ser expulso do Exército em desonra, mas acabou se reconciliando com o oficiliato das Forças Armadas. Uma informação curiosa que o professor peneirou em suas pesquisas é a de que entre 1988 e 2014 Bolsonaro foi proibido de colocar os pés na Academia Militar das Agulhas Negras.

 “O Bolsonaro não podia entrar em estabelecimentos militares do Rio de Janeiro. Ele estava interditado de fazê-lo porque para o alto oficialato das Forças Armadas ele era uma má influência”, recorda.

A reorganização subterrânea da direita recrudesceu

em 2002 com a ascensão de Lula ao poder e se intensificou muito mais a partir do triunfo de Dilma Rousseff, em 2010, e a instalação da Comissão da Verdade, no ano seguinte. Três anos depois, Bolsonaro teve a sua votação mais expressiva, lembra o acadêmico: em 2014, ele foi o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro, quatro anos antes de ganhar as eleições presidenciais.

O culto à morte e a teoria conspiratória do projeto Orvil

A segunda perna do tripé é o que Rocha chama de adaptação truculenta da Lei de Segurança Nacional (1969) em tempos democráticos. Seu conceito-chave era o da guerra revolucionária, criado pelos franceses para combater os argelinos na luta pela libertação colonial. A tortura, execução e desaparecimento de corpos de adversários era a política oficial de Estado.

“Durante a formação do jovem militar Jair Messias Bolsonaro, estava vigente a Lei de Segurança Nacional de 1969, que não é apenas uma lei, mas um culto à morte. Em seus  107 artigos, o substantivo morte aparece 32 vezes e 15 artigos prescreviam a pena de morte. O eixo da Lei de Segurança Nacional era a identificação do inimigo interno e a sua eliminação. Esse é o cerne da mentalidade bolsonarista”, explica o professor.

O terceiro vértice  é a adoção da narrativa conspiratória de um projeto secreto do Exército, o Orvil (a palavra livro, ao contrário). Trata-se de uma reação da direita ao projeto Brasil, Nunca Mais, o livro-denúncia das arbitrariedades cometidas pela ditadura militar, lançado em 1985.  Se o Brasil Nunca Mais referia-se à mensagem “tortura nunca mais”, o Orvil incorpora a ideia do “nunca mais”, para que nunca mais haja esquerda no Brasil, segundo Rocha.

A narrativa conspiratória do Orvil sobre a história republicana, recheada de um “anticomunismo de almanaque”, moldou o jovem Bolsonaro e continua a exercer influência sobre ele e sobre outros militares e civis de extrema-direita que nunca engoliram o fim da ditadura, de acordo com o professor. Para eles, esse “perigo vermelho” havia se infiltrado nas instituições brasileiras.

Das quase mil páginas do projeto Orvil, cerca de 40 definem o projeto de implosão das instituições de Estado e da sociedade civil, por estarem, segundo essa teoria conspiratória,  “infiltradas” por integrantes da esquerda, conta o acadêmico. Entre as  “instituições aparelhadas pela esquerda” estão  a  mídia, showbusiness, escolas, universidades, instituições associadas a direitos humanos e defesa de  meio ambiente, entre outras. “Para o Bolsonarismo, vencer as eleições é apenas uma batalha. A verdadeira guerra é cultural. Daí a arquitetura da destruição do governo Bolsonaro, já que destruir instituições ‘aparelhadas’  é mais importante do que governar”, acrescenta ele.

Máquinas de fatos alternativos e a pós-política no Brasil

As Crônicas do Brasil Pós-Político – que consta do subtítulo do livro do professor João Cezar  de Castro Rocha  _ referem-se à distopia do esmagamento das mediações institucionais para dar lugar a uma democracia direta alicerçada na instabilidade bestial das redes sociais.

A guerra cultural bolsonarista é uma máquina inesgotável de produção de notícias falsas, com uma narrativa polarizadora que mantem o clima incessante de campanha eleitoral para mobilizar as massas digitais. Essa é a nova forma de fazer política: é a “pós-política”.

Mas o autor aponta um problema nessa pós-política: a guerra cultural  implica a negação dos dados objetivos da realidade e  a criação incessante de inimigos que acaba por atrapalhar a administração do governo. Segundo ele, isso impede a articulação de um programa de governo com um mínimo de coerência e continuidade.

“Donald Trump errou no reconhecimento da gravidade da realidade da doença e perdeu a eleição. Pode acontecer o mesmo com Bolsonaro, que teve agora a pior avaliação em dois anos e dois meses de governo. Isso ocorre evidentemente pelo caráter negacionista da vacina. Bolsonaro é o único governante do mundo que segue negando a pandemia”, diz o professor.

“O evidente fracasso do governo bolsonaro salta aos olhos de todos. Mesmo para os bolsonaristas, não é possível negar isso, especialmente nas área da Educação e da Saúde, por exemplo”, completa ele.

Proposta de uma linguagem nova

Rocha constata que “não sabemos lidar” com a mobilização permanente da guerra cultural. No livro, ele procura responder à seguinte pergunta: “Como devemos nos comportar em relação aos discursos da extrema direita que vencem a batalha discursiva?”.

O acadêmico adianta que ninguém tem uma resposta certeira, mas apresenta uma proposta: “Devemos parar de disputar narrativas para não virarmos reféns do bolsonarismo. Nós vamos perder se fizermos isso e ele vence em 2022”.

O professor  propõe uma ética do diálogo, que valorize a diferença como fonte de enriquecimento. “Em nenhuma circunstância devemos adotar a retórica do ódio. Precisamos criar um canal de diálogo na sociedade que não dispute narrativas. Para nós, o que importa é a ética do diálogo com o outro, que não é o inimigo a ser eliminado, e sim um outro cuja diferença enriquece a minha vida”, explica.

O professor Rocha dá um exemplo: “Eu sou de esquerda, mas isto não quer dizer que eu não reconheça a legitimidade no jogo democrático de pessoas de direita, conservadoas ou liberais”.

Na tentativa de diálogo com eleitores de Bolsonaro deve-se apontar fatos e números, além de fazer as perguntas pertinentes, sem recorrer à adjetivação. É preciso debater de forma clara e serena. “Podemos mostrar  com dados do governo que o minsitério da Educação tem a menor execução orçamentária de sua história porque simplesmente não apresenta projetos. Ou podemos mostrar com dados objetivos que o ministério da Saúde realiza o maior fracasso do mundo no enfrentamento da pandemia”, exemplificou.

Porém, ele faz a ressalva de que esse diálogo não é possível com os apoiadores radicais de Bolsonaro, que seriam cerca de 20% de seus eleitores. “Mas dispomos de 70 a 80% do eleitorado do Bolsonaro para dialogar. Abrir mão desse diálogo me parece algo insano”, afirma.  Sua esperança é de que a sociedade brasileira consiga reagir com sucesso ao bolsonarismo: “Espero que os brasileiros comecem a decodificar o que está acontecendo”.

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Florência Costa

A jornalista Florência Costa, baseada em São Paulo, escreve para o website internacional The Wire e é autora do livro Os Indianos (Editora Contexto). Entre 1991 e 1995 foi correspondente do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC de Londres em Moscou. Trabalhou como repórter de política no Jornal do Brasil e no jornal O Globo, e foi subeditora de política na Revista Istoé. Entre 2006 e 2012 foi correspondente do jornal O Globo na Índia e em 2014 trabalhou como editora de Internacional do jornal Brasil Econômico.

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