Por seis meses, em seu primeiro mandato, o ex-presidente Lula conviveu com Geraldo Brindeiro como procurador-geral da República. Esgotado o mandato daquele que se perpetuou como “engavetador-geral”, em de 30 de junho de 2003 tomava posse na PGR Cláudio Fontelles, o mais votado da lista tríplice entregue pelos Subprocuradores-gerais à Presidência.
Ao nomear Fontelles, Lula inaugurou a tradição – só seguida por ele e por Dilma Rousseff – de prestigiar a decisão autônoma do Ministério Público Federal. Em 2005, o escolhido foi Antônio Fernando de Souza, que meses depois tentaria virar uma espécie de “paladino” anticorrupção patrocinando ações espetaculosas no âmbito do “escândalo do mensalão”.
Passaram-se dois anos e Antônio Fernando traiu a categoria, apresentando seu nome para novo mandato e sendo o vitorioso em nova lista tríplice. Lula o nomeou, quando podia não fazê-lo se tivesse usado os métodos que Michel Temer consagraria no futuro – fazendo de Raquel Dodge, segunda mais votada na lista a seu tempo – a escolhida para o posto depois da usurpação do poder na esteira do golpe de 2016. Com desfaçatez inédita, Bolsonaro superou Temer nomeando e renomeando Augusto Aras, que sequer se submeteu ao escrutínio dos Subprocuradores federais, em 2019 e em 2021.
Há que se perguntar, numa remissão histórica e olhando para trás, a Lula e a Dilma Rousseff, a ex-presidente que nomeou Roberto Gurgel, sucessor de Antônio Fernando e patrocinador da denúncia da Ação Penal 470 (Mensalão) no Supremo Tribunal Federal em 2011, e Rodrigo Janot, o permissivo PGR que viu nascer e deu asas à “Força Tarefa da Lava Jato”: valeu a pena seguir a institucionalidade?
Desarmar os espíritos nas Forças Armadas: o 1º grande desafio de um eventual 2º mandato
Em seu primeiro dia como ministro da Defesa durante o 2º mandato de Lula, cargo no qual se manteve no início do 1º governo de Dilma, o advogado, ex-deputado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nélson Jobim rebarbou o auto convite de um general, que se incluiu num voo do ministro e de outros assessores sem pedir permissão ao chefe. “Fiz a lista de todos que iremos na viagem”, comunicou o militar a Jobim. “Você não vai” respondeu o ministro da Defesa ao subalterno fardado. Quando o general quis saber o motivo, ouviu a resposta: “as listas de embarque, eu faço”. E mais não se falou, mas, ficou claro a partir do episódio quem mandava na agenda.
Jobim foi o sexto brasileiro a ocupar o Ministério da Defesa. Todos antes dele eram civis. Depois dele, outros quatro civis sentaram na cadeira de comando das três forças militares até que em 27 de fevereiro de 2018, na esteira do impeachment sem crime de responsabilidade (ou seja, golpe), Michel Temer nomeia ministro da Defesa o general da reserva Joaquim Silva e Luna. Já sob Jair Bolsonaro, os generais (também da reserva) Fernando Azevedo e Silva e Walter Braga Netto, atual ministro, ocupam o posto.
Braga Netto pôs na cabeça que deveria ser o nome escolhido para a vice-presidência na chapa com Bolsonaro. A partir daí, abriu-se uma disputa no Exército, na Marinha e na Aeronáutica pela sucessão no Ministério da Defesa. Os almirantes-de-esquadra são os mais animados com o mimo – acham que chegou a hora de um deles sentar na cadeira de coordenação e de comando das três armas. Os generais-de-exército não querem perder a primazia (e a boquinha). Brigadeiros-do-ar assistem à disputa de longe (e do alto da própria arrogância, uma vez que se sentem profissionais mais qualificados que os “irmãos de farda”).
A pergunta que se impõe, no caso, é um pouco diferente: como retornar à institucionalidade? Qual o preço, na moeda “tensões internas”, que o Brasil está disposto a pagar para regressar à razoabilidade de ter civis no comando da Defesa?
Auditores da Receita vivem o pior momento de uma das mais qualificadas carreiras de Estado
Em 2007, durante o 2º mandato de Lula (PT), foram unificadas as estruturas da Receita Federal e da Receita Previdenciária. Criou-se, a partir dali, uma estrutura única de Receita Federal do Brasil, antiga reivindicação de uma das mais qualificadas carreiras de Estado do País. A partir de então, toda a arrecadação de impostos federais e contribuições tributárias de matriz previdenciária passou a ser centralizada na Receita Federal.
“O bom cobrador de impostos é aquele que impõe medo no mau contribuinte, fazendo-o ao menos pensar duas vezes antes de virar sonegador”, costumava dizer Osiris Lopes Filho, secretário da Receita Federal sob o governo Itamar Franco. Osiris pediu demissão quando viu dificultada sua missão de fiscalizar a Seleção Brasileira de 1994, no momento em que os heróis do tetracampeonato mundial de futebol pousaram em solo nacional (no Recife) depois da conquista da Copa do Mundo. Já ali, a reivindicação de autonomia, unidade de ação e reconhecimento de duas das mais preparadas e melhor remuneradas categorias de servidores públicos tentava se impor. Só nas administrações petistas as agendas tiveram consequência prática.
Nas engrenagens do lavajatismo, alguns auditores fiscais se colocaram a serviço da “República de Curitiba” e ganharam protagonismo na categoria. Por um breve período, entre o fim do período Temer e o fim do ano passado, um viés que pode ser descrito como bolsonarista se apoderou das lideranças do sistema de arrecadação do Brasil. O paulatino aparelhamento das estruturas de fiscalização, sendo o desmonte do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) o mais escandaloso deles, serviu ao clã Bolsonaro e desmoralizou os auditores fiscais.
Hoje, a própria categoria se pergunta: valeu a pena endossar o discurso de ódio e a falsa espiral udenista entranhada no lavajatismo?
Os flagrantes das ruínas institucionais não param por aí. Elas estão ainda no Itamaraty e por todo o Judiciário
Procuradoria Geral da República, Forças Armadas e Receita Federal não são as únicas instituições republicanas reerguidas a duras penas no pós-ditadura, com as bases definidas pelos constituintes de 1987/88, que agora estão em ruínas.
O Ministério das Relações Exteriores, que tinha na excelência do Instituto Rio Branco uma das escolas formadoras de profissionais de Estado como raros centros brasileiros, passa por inéditos aparelhamento e desmonte.
O Poder Judiciário, refém de erros de posicionamento cometidos no início do processo golpista que levou ao impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma (e do colaboracionismo sem subterfúgios com o processo), também viu ruírem colunas-mestras da independência harmônica que deveria ter insistido por preservar. Restaurá-las tem dado trabalho imenso e consome energia atroz.
Quem mira a Esplanada dos Ministérios, coração do poder no desenho majestoso de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, tendo a Praça dos Três Poderes ao fundo da paisagem, vê hoje os escombros das instituições republicanas.
Não valeu a pena deixar procuradores da República exacerbarem o poder que lhes havia sido conferido pelos constituintes originários. Atravessaram o samba, nutriram criaturas disformes como Antônio Fernando, Roberto Gurgel, Rodrigo Janot, Augusto Aras. Não será possível combatê-los crendo que o melhor caminho é o retorno à institucionalidade perdida das listas tríplices. Esse tema – o que fazer com a PGR? – tem de estar em debate nas eleições legislativas.
Outra discussão irremovível dos palanques nas campanhas parlamentares de 2022 é a hora do toque de recolher dos militares de volta aos quartéis e aos trilhos de suas missões constitucionais: na transição para o governo eleito em outubro (porque não parto do pressuposto de que haverá País no dia seguinte a uma improvável e impensável “reeleição), ou só no dia seguinte à posse do novo presidente sagrado nas urnas? Qual o papel que o Congresso tem de jogar na afirmação dessa risca constitucional?
Como devolver autonomia e protagonismo aos auditores fiscais da Receita, estimulando-os a cumprirem com suas obrigações profissionais, o que é fundamental para o Estado? O atual governo desmontou a máquina de arrecadação. Não há Estado sem estrutura fiscal azeitada. E no momento, nossa estrutura fiscal é uma engrenagem sem correntes, sem correias de transmissão, sem lubrificação. Este é outro assunto imprescindível nas eleições parlamentares.
Por fim, ainda é funcional o sistema de preenchimento de vagas nos tribunais superiores? Com o espetáculo grotesco das indicações de Kássio Nunes e André Mendonça para o STF, com a participação de investigados próximos ao clã presidencial e bispos de algumas denominações evangélicas a cabalar votos para eles como se fossem apaniguados de desclassificados, não se teria chegado a um ponto de inflexão da flexibilidade constitucional? O que esperar desses ministros do Supremo que estarão por lá nos próximos 20 anos, e um dia sentarão à proa do Poder Judiciário em razão da atual forma de alternância do comando dos tribunais superiores?
Responder às questões postas neste artigo é missão para quem pretende disputar o voto dos brasileiros para compor o Congresso Nacional. Encontrar um conjunto lógico de argumentos e dispositivos legais que atendam à urgência da restauração institucional é o desafio que espera o próximo presidente da República. Arrisco dizer que só há uma biografia, dentre tantos candidatos, capaz de liderar esse processo.