Política econômica brasileira fica obsoleta depois do Plano Biden

Por José Paulo Kupfer – do UOL

Os gastos públicos, em 2020, nos Estados Unidos, para o enfrentamento da covid-19, chegaram a US$ 3 trilhões. O montante representa 15% do PIB (Produto Interno Bruto) americano e equivale a dois PIBs brasileiros. Com o US$ 1,9 trilhão do “plano de resgate” do novo governo do presidente Joe Biden, já aprovado no Congresso, os gastos públicos com a pandemia avançam para quase US$ 4 trilhões. O total pode chegar a US$ 6,2 trilhões (30% do PIB), em dez anos, se o “plano de emprego” de Biden, em discussão no momento, também for aprovado.

Mais do que a montanha de dinheiro envolvido – volume sete vezes acima dos recursos mobilizados no New Deal dos anos 30 do século passado, 40 vezes, no Plano Marshall pós-Segunda Guerra e seis vezes, nos gastos públicos no crash de 2008 -, os planos de Biden expressam uma virada radical em conceitos e construções teóricas de políticas econômicas. Não se via nada parecido, na economia ocidental, desde as reformas liberais do presidente Ronald Reagan, nos EUA, e da primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, há 40 anos.

O Bidenomics é, de algum modo, uma reação em sentido oposto ao Reaganomics. Suas características desenvolvimentistas e intervencionistas, de inspiração keynesiana, invertem as diretrizes liberais adotadas por Reagan e Thatcher, de redução do tamanho do Estado e corte de impostos. É uma construção de política econômica que retoma os pilares básicos das propostas de britânico John Maynard Keynes, considerado o maior economista do século 20, para a superação da Grande Depressão.

Como proposto por Keynes, nos ano 30 do século 20, e executado pelo presidente Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos, com repercussão e réplicas no mundo ocidental, o plano de Biden recorre a gastos públicos e, assim, recoloca o Estado na linha de frente da expansão econômica. O objetivo direto é recuperar e ampliar a infraestrutura produtiva, com ênfase em economia verde e digital, impulsionando a criação de empregos. Para financiá-lo, sem fazer explodir a dívida pública, conta com a elevação da arrecadação, a partir do crescimento econômico, mas também propõe aumento de impostos para empresas e cidadãos mais ricos.

O Bidenomics deflagrou, nos Estados Unidos, uma discussão sobre seus eventuais impactos inflacionários e riscos para o equilíbrio das contas públicas. Curioso que economistas de grande prestígio e do mesmo campo do pensamento econômico – o de raiz keynesiana -, caso do ex-secretário do Tesouro Larry Summers, e do Prêmio Nobel e colunista do New York Times Paul Krugman, estejam liderando lados opostos no debate.

Summers teme efeitos inflacionários de um superaquecimento da economia, enquanto Krugman entende que, mesmo com estímulos fortes como os previstos nos programas de Biden, a economia ainda está longe do pleno emprego e, portanto, de pressões inflacionárias duradouras. No meio da polêmica, a secretária do Tesouro do novo governo e ex-presidente do Banco Central, Janet Yellen, acredita que, se houver risco de aceleração da inflação, o Fed (Federal Reserve, banco central americano) teria instrumentos para contê-la.

O Bidenomics já está provocando debates em todo o mundo sobre as consequências de um plano tipicamente keynesiano – elevação de gastos públicos, aumento da presença do Estado na economia, investimento em infraestrutura. Esse debate vai abranger tanto seus objetivos – geração de empregos e impulso da atividade econômica – quanto seus possíveis efeitos colaterais indesejados – por exemplo, inflação e desequilíbrio das contas públicas.

Já está também colocando em cheque teorias abraçadas pelos economistas liberais brasileiros, que orientaram as políticas econômicas adotadas no Brasil, a partir do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nos governos de MIchel Temer e Jair Bolsonaro. A principal delas é a da “contração expansionista”, que deu sustentação a programas de austeridade fiscal e controle de contas públicas.

A “contração expansionista” descreve um circuito virtuoso, deflagrado a partir da perseguição do equilíbrio fiscal. Cortes de gastos públicos tão severos quanto necessário resultariam em retomada da confiança de empresários e investidores na retomada da atividade econômica. A volta dos investimentos promoveria a geração de empregos e a expansão da economia.

Mais de uma década de baixo crescimento em grande parte do mundo ocidental, porém, produziram dúvidas sobre a eficácia da “contração expansionista”. Seus próprios autores, tendo à frente Alberto Alesina, laureado economista de Harvard, morto no ano passado, já haviam publicado artigos relativizando o circuito virtuoso imaginado como efeito de programas de austeridade fiscal.

No Brasil, porém, onde as ideias, como lembrava o jornalista e escritor Millôr Fernandes, só chegam quando ficam velhas lá fora, a “contração expansionista” está prolongando sua agonia. Quanto mais o Bidenomics avançar, nos EUA e mundo afora, mais as políticas econômicas ainda dominantes no Brasil correm o risco de ficarem obsoletos e isoladas.

Difícil discordar de que a economia brasileira se encontre necessitada de um programa com as características dos adotados e propostos por Biden nos EUA. Um programa de resgate já foi aplicado em 2020, com resultados positivos.

Apesar da hesitação do governo Bolsonaro, o Congresso abriu espaços para mobilizar, apenas no enfrentamento da pandemia, vultosos gastos públicos que alcançaram soma superior a R$ 550 bilhões, o equivalente a 7,5% do PIB. Além da destinação natural ao setor de saúde, os recursos foram aplicados em programas de sustentação de renda de vulneráveis e trabalhadores informais, manutenção de empregos e créditos em condições favoráveis a empresas.

Esses programas foram fundamentais para reduzir o mergulho do PIB de 2020. De cerca de 10%, estimados antes do auxílio emergencial de R$ 600, por quatro meses, e depois mais três meses, de R$ 300, o recuo da economia conteve-se em 4,1%. Numa conta simples, pelo menos R$ 500 bilhões deixaram de ser perdidos.

Também contribuíram para mitigar a extrema pobreza e a fome. Com o auxílio de R$ 600 mensais, decididos do Congresso depois que o governo Bolsonaro enviou proposta de R$ 250 por mês, a extrema pobreza foi, na prática, temporariamente, eliminada.

Do lado negativo, o aumento do consumo de itens básicos, principalmente alimentos, gerou pressão sobre seus preços. Parte das altas, porém, deve ser debitada do próprio governo, que não cuidou, diferentemente de outros países exportadores, da formação de estoques reguladores, para cobrir a demanda doméstica. Com o aumento não regulado das exportações de arroz, soja e derivados, o consumo interno acabou prejudicado.

Em relação às contas públicas, o déficit primário elevou-se a R$ 700 bilhões, equivalentes a 9,5% do PIB. O resultado mostrou-se excepcionalmente alto – no ano anterior, o déficit primário não tinha chegado a 1% do PIB. Mas, em razão dos juros baixos, a dívida bruta, embora recorde, não chegou a 90% do PIB, quando muitos previam que poderia ultrapassar 100% do PIB.

Está começando em abril um segundo programa de resgate, mas, por enquanto, restrito a um auxílio emergencial mais tímido no valor mensal e na amplitude de beneficiários. Contra quase R$ 300 bilhões gastos apenas com o auxílio emergencial, no ano passado, o suporte a vulneráveis, em 2021, até aqui aprovado, não passa de R$ 44 bilhões, o que representa apenas 0,5% do PIB e não chega a 15% do que foi aplicado em 2020.

Claramente insuficiente para as necessidades brasileiras, o novo auxílio não impedirá o retorno do país a níveis maiores de pobreza e ao recrudescimento da insegurança alimentar. Ele será bancado por créditos extraordinários, que não são sujeitos às restrições do teto de gastos, e poderia, portanto, ser bem mais robusto.

Já um programa de investimento em infraestrutura e geração de emprego, à la Bidenomics, não teria como ser implementado dentro dos marcos brasileiros atuais de controle das contas públicas e do sistema tributário vigente. Com as restrições do teto de gastos e de um sistema tributário no qual quem tem mais renda contribui menos, não seria possível estruturar um programa dessa natureza.

“Aportar R$ 250 bilhões, cerca de 3,5% do PIB, em infraestrutura, no pós-pandemia, não parece nada astronômico”, diz André Nassif, professor do programa de pós-graduação em economia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e economista aposentado do BNDES. “Montante equivalente será transferido ao mercado financeiro se a taxa básica de juros subir este ano para 5,5% ou 6%, como se especula”, compara.

Segundo Nassif, também seria possível estruturar um programa de reconstrução de infraestrutura e emprego sem recorrer a financiamento monetário. “Recursos poderiam ser obtidos com recomposição de gastos, uso de poupanças existentes nos fundos setoriais e aumento em tributos diretos, com criação de novas faixas no Imposto de Renda e taxação de lucros e dividendos”, sugere Nassif.

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