Se é legítimo tomar por aceitável que um governo eleito (o de Volodymyr Zelensky) com 73% dos votos numa Democracia ocidental que em 2019 figurava no ranking “Índice da Democracia” com 5,9 pontos e classificada na categoria amarela de “Regime Híbrido”, como argumentam os partisans de Vladimir Putin nesta guerra tão insana quanto desumana contra a Ucrânia, por que seria ilegítimo advogar e defender abertamente a derrubada de um líder autocrata de um Estado que no mesmo ranking tem desempenho de apenas 3,11 pontos e figura como “Regime Autoritário”?
O autocrata é Putin. Desde 1999, quando ascendeu ao posto de 1º ministro de um provecto Bóris Ieltsin, não largou mais o poder. Em 2000, venceu a eleição para suceder Ieltsin. Entre 2008 e 2012, preservou o poder de fato voltando à chancelaria – daquela vez, de Dimitri Medvedev, um presidente-fantoche que obedecia a ele. Depois que voltou à presidência russa, em 2012, eleito com 63% dos votos e reeleito em 2016 com o sufrágio de 78% dos eleitores em um pleito marcado pela eliminação dos adversários por meio de dissuasão violenta ou por perseguição judicial, Vladimir Putin alterou a legislação russa e concedeu a si mesmo a possibilidade de seguir no poder até 2036. No curso dos anos, cuidou de ampliar sua força por dentro do Estado fazendo vergar as instituições.
Justificativas da Rússia para a agressão e invasão da Ucrânia não se sustentam em cotejamento simétrico de valores
O regime de Putin não tem freios ou contrapesos aos anseios dele, e são desconhecidos os limites para a ambição do ex-agente secreto da KGB, o serviço secreto da extinta União Soviética, que se diz um anticomunista convicto e é também conhecido por sua frieza, misoginia e intolerância aos contrários.
Admita-se, portanto, por paralelismo racional, que em nome de “valores civilizatórios” há tantos argumentos para defender a derrubada de Vladimir Putin por uma aliança de Estados que se contrapõe à manutenção do arsenal nuclear russo nas mãos de uma liderança avessa às regras democráticas e ao primado da diplomacia, quanto as razões esgrimidas pelos simpatizantes da derrubada de Zelensky e ascensão de um governo “pró-Moscou” na Ucrânia (ou, mesmo, anexação do território ucraniano ao russo, como se pode inferir a partir das forças desproporcionais no conflito em curso no leste europeu).
Se o presidente ucraniano seria um títere das falanges nazistas que permaneceram vivas na Ucrânia, ele tem de cair. É o que dizem alguns dos anti-Zelensky. Se a Ucrânia imaginava ameaçar a Rússia entrando para a OTAN, devaste-se a Nação nascida depois do colapso da URSS com a blitz desumana de bombardeios e imponha-se a força imperial russa, justificam outros.
Se é possível validar os argumentos a favor de Putin nesta guerra amoral, como todas; aética, como todas; desumana, como todas; tem de se reconhecer por válidos, também, os argumentos de quem defende a imediata derrubada do governo russo.
Imaginando que esta especulação seja bem sucedida, democratas de verdade devem iniciar a campanha pela prisão do “presidente” da Rússia – e aí começa a grande diferença de tratamento entre ele e Volodymyr Zelensky: Vladimir Putin tem de ser julgado pelos crimes de guerra que já cometeu ao submeter a população civil da Ucrânia aos bombardeios, à fome, aos desmonte da infraestrutura do país.
Quanto mais longa se tornar essa guerra, mais crimes serão cometidos. A perversidade dos invasores começará a ser vista a partir do primeiro mês de invasão, quando a luta pela sobrevivência igualar russos e ucranianos na terra arrasada do território invadido.
Adoração a Putin estabeleceu rapidamente o “bolsonarismo de esquerda”, algo antes impensável
No Brasil, onde o calor dos trópicos tem capacidade única para derreter tudo – sobretudo ideias e conceitos – e fundir matérias antes tidas por imiscíveis em gosmas pastosas, Vladimir Putin tem admiradores de sua boçalidade atroz à extrema-direita e à extrema-esquerda. O porta-estandarte, líder da bateria e presidente da “Escola de Samba Unidos e Fechados com o Vladimir” é Jair Bolsonaro.
Adepto da “Nova Ordem Mundial”, como ele mesmo escreveu no whatsapp para alguns amigos, fazendo um melting pot de conceitos ideológicos (profundos como pires de cafezinho de padaria) deslindados pelos gurus Olavo de Carvalho (dele) e Alexander Dugin (de Putin), Bolsonaro agrada à extrema-esquerda e a antigos críticos porque se alinha a quem enxerga nos Estados Unidos e em Nações como Reino Unido, Alemanha, França, na ONU e na OTAN, instrumentos do “imperialismo” que teria passado a exercer o poder por meio de grandes corporações planetárias e de seus controladores.
A adoração genuflexa de Bolsonaro a Putin terminou por aliar, no jogo político e ideológico brasileiro, a ignorância da direita nacional (que não conhece limites e sempre é capaz de nos assombrar com a perversidade dos seus objetivos) e a arrogância pueril de “ultra esquerdistas” que se creem guardiães da sabedoria e do conhecimento universais.
O “bolsonarismo de esquerda” é um rebento desses dias incomuns, já nasceu e caminha entre nós, sorrateiro, minando a cena política e dividindo o lado que deveria estar unido no objetivo central: vencer Bolsonaro, aniquilar o bolsonarismo, julgar os criminosos do regime que o servem.
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