Irregularidades podem comprometer conclusão da transposição do São Francisco

No dia 22 de março, uma semana antes de deixar o cargo para ser candidato a senador pelo Rio Grande do Norte, o então ministro do Desenvolvimento Regional Rogério Marinho ocupou cadeia nacional de rádio e televisão, em horário nobre, para se jactar do que disse ser “a conclusão e entrega da transposição das águas do rio São Francisco” para vastas áreas dos sertões do Ceará e da Paraíba e para a Chapada do Apodi, no sertão potiguar. Segundo a própria assessoria do ministério, o hoje ex-ministro não ignorava, no pronunciamento, o rol de problemas e possíveis ilegalidades contidos nos contratos firmados a toque de caixa e com dispensa de licitação para que Marinho se despedisse do cargo convertendo a transposição em sua principal bandeira de campanha.

Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional do Governo Bolsonaro

“O Ex-Ministro Rogério Marinho tinha total conhecimento das condições de execução de todos os contratos referentes ao PISF (Projeto de Integração do São Francisco) e das auditorias realizadas pelos órgãos de controle e sempre ordenou total colaboração e promoção das adequações propostas pela CGU (Corregedoria Geral da União)”, escreveu a assessoria de imprensa do Ministério do Desenvolvimento Regional para a Plataforma Brasília, em e-mail enviado à redação na tarde da última 5ª feira 7 de abril. “Com o objetivo de aprimorar continuamente a execução das obras e serviços, o MDR mantém canal aberto com a CGU e demais órgãos de controle apresentando todos os esclarecimentos solicitados e oferecendo amplo acesso a todos processos em andamento”, prosseguia o texto da assessoria. 

Eram muitos os processos em andamento aos quais o e-mail da assessoria se referia. O mais estranho deles, um despacho identificado como “SEI/MDR – 284688”, assinado eletronicamente às 18h26min do dia 25/10/2020 pelo secretário nacional de segurança hídrica, Sérgio Luiz Soares de Souza Costa. Naquele documento administrativo, ignorando advertências do Departamento de Projetos Estratégicos em outro despacho (de número SEI/MDR 2844560, de 23/10/2020) e contidas no Relatório de Análise de Propostas SEI/MDR – 2843900, também de 23/10/2020, o secretário Sérgio Costa autoriza a “contratação por dispensa de licitação” do consórcio de empresas formado pelas empreiteiras Vector, Magna, JPW e Sanart (todas de médio e pequeno porte) para que executassem os serviços de “pré-operação e manutenção das instalações do sistema adutor dos trechos I e II do Eixo Norte do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”. Valor da contratação sem licitação: R$ 24.547.003,69 – vinte e quatro milhões, quinhentos e quarenta e sete mil e três reais e sessenta e nove centavos.

Inconsistências técnicas apontadas pela equipe profissional do Ministério 

A fim de alertar o escalão avançado da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos do Ministério do Desenvolvimento Regional, no despacho 2844560 o diretor do Departamento de Projetos Estratégicos, Oscálmi Porto Freitas, explicita: “vale ressaltar que as empresas Vector, Magna e JPW, em consórcio, tem contrato vigente e em execução para serviços semelhantes ao objeto dessa Dispensa de Licitação no Eixo Leste do PISF”. A Sanart, quarta empresa que terminou por integrar o consórcio vencedor para a pré-operação do Eixo Norte junto com as outras três que já operavam o Eixo Leste da transposição, não foi citada justamente porque só foi convidada a se juntar ao grupo a posteriori. Os controladores da empresa têm relações familiares com o senador Eduardo Gomes (PL-TO), um dos líderes do governo Bolsonaro no Congresso.

Em 2019, outro senador, Roberto Rocha (PTB), candidato ao governo do Maranhão este ano, foi quem apadrinhou politicamente a entrada do secretário Sérgio Costa no governo Jair Bolsonaro para um cargo de direção na Codevasf – Companhia de Desenvolvimento dos Vales dos Rios São Francisco e Parnaíba. Coincidentemente (ou não?), as empresas Magna, Vector e JPW foram contratadas para operar trechos da transposição, pela Codevasf, na época em que Sérgio Costa era diretor da estatal. Por ironia (ou não?), o escritório político do senador Rocha em São Luiz se localiza na Rua da Neblina, praia do Calhau.

Ainda no despacho nº 2844560 do Departamento de Projetos Estratégicos do MDR que deveria guiar a contratação (ou não) do consórcio de empresas que teriam por missão pré-operar o Eixo Norte da transposição, sem licitação, lê-se: “a Comissão considerou que o consórcio Vector/Magna/JPW/Sanart não atendeu ao item 20.1.9.2, ‘b) Operação e manutenção e/ou instalação e/oi montagem de estação de bombeamento com vazão mínima de 4m³/s, por unidade de motobomba’”. 

No Relatório de Análise de Propostas nº 2843900 os integrantes da Comissão Administrativa Getúlio Peixoto Filho, Tácito Sousa e Plácido Beserra ressaltam que:

  • “Quanto aos atestados nºs 12 e 13, da empresa Vector, se referem somente a atestados de operação de sistemas hídricos, não havendo qualquer menção à manutenção destes sistemas, conforme exigido do item 20.1.9.2, alínea ‘a’”.
  • “Quanto ao atendimento da alínea ‘b’, não foram apresentados atestados que comprovem a operação e manutenção e/ou instalação e/ou montagem de estação de bombeamento com vazão mínima de 4m³/s, por unidade de motobomba. Os atestados nº 12 e 13 da Vector comprovaram a operação de tais equipamentos, no entanto não comprovaram a manutenção. Os atestados nº 7 e 8 da Magna são referentes a serviços de consultoria especializada para supervisão, acompanhamento técnico e controle de obras, o que não corresponde a instalação e/ou montagem, tampouco a operação e manutenção”.
  • “Cabe destacar que no atestado nº 01 foi comprovada a operação e manutenção de conjunto motobomba de 3,34m³/s, correspondente a 83,5% da vazão solicitada no termo de referência”.

Na conclusão que se segue a esses itens elencados, os integrantes da Comissão Administrativa deixam claro no Relatório de Análise de Propostas: “Constatando-se que a proposta de menor preço à administração foi apresentada pelo consórcio Vector/Magna/JPW/Sanart, no entanto, o consórcio não atendeu plenamente aos requisitos de comprovação de capacidade técnica. Vale ressaltar que as empresas Vector, Magna e JPW, em consórcio, tem contrato vigente e em execução para serviços semelhantes ao objeto dessa Dispensa de Licitação no Eixo Leste do PISF”. Na operação do Eixo Norte, durante uma das visitas do então ministro Rogério Marinho ao canteiro de obras da transposição no Rio Grande do Norte, ocorreu um acidente com vítimas fatais entre os trabalhadores do consórcio. Uma das causas investigadas do acidente foi a inexperiência operacional dos operadores.

Nos contratos para operação e pré-operação de trechos da transposição, as empresas consorciadas precisam referenciar para o Ministério do Desenvolvimento Regional a remuneração que oferecem aos seus profissionais – tanto a engenheiros quanto a operadores técnicos dos canteiros de obras e até funcionários administrativos. No Eixo Leste, licitado pela Codevasf, as empresas integrantes do consórcio (excetuada a Sanart, que ainda não compunha o grupo), ofertaram na proposta que fizeram, salários que chegam a ser metade daquelas remunerações referenciadas no Eixo Norte – e a diferença temporal entre os dois contratos é de apenas 90 dias, ou seja, três meses. Tamanho desequilíbrio remuneratório a profissionais dentro da mesma empresa chamou atenção da Corregedoria Geral da União, mas, o órgão de correição decidiu não seguir com as investigações da falta de parâmetros. Aina no âmbito da Codevasf, em 2021 o contrato foi objeto de denúncia veiculada pelo jornal Folha de S Paulo, em razão do consórcio vencedor naquele certame licitatório pagar salários inferiores àqueles descritos na planilha contratual.

As respostas do Ministério do Desenvolvimento Regional:

Procurado pela Plataforma Brasília para explicar o porquê de ter seguido com a contratação, com dispensa de licitação, de um consórcio em torno do qual existiam advertências técnicas em contrário de órgãos e instâncias do próprio MDR, o secretário de Recursos Hídricos Sérgio Costa orientou que as perguntas fossem transferidas à assessoria de comunicação do Ministério do Desenvolvimento Regional. Eis as manifestações da Ascom do ministério:

  1. “As inconsistências técnicas foram devidamente avaliadas, e tendo em vista a situação emergencial, reconhecida inclusive pela Consultoria Jurídica da União junto ao Ministério do Desenvolvimento Regional (Conjur/MDR), e após reapreciação da área técnica, em estrita observância aos princípios da economicidade, eficiência e vantajosidade, foi escolhida a proposta que oferecia a maior vantajosidade ao erário, representando uma economia de R$ 1.454.953,37 (um milhão, quatrocentos e cinquenta e quatro mil, novecentos e cinquenta e três reais e trinta e sete centavos) aos cofres públicos.
  2. Quanto ao não atendimento pleno dos requisitos técnicos, os requisitos plenamente atendidos, correspondiam a 83,5%, a exigência era de 4 m³/s, e a capacidade comprovada foi de 3,34 m³/s. Considerou-se que essa diferença não era determinante, o que se comprovou, posto que o contrato foi executado sem que houvesse qualquer problema quanto à capacidade técnica do Consórcio.
  3. O uso da palavra alerta no relatório de análise das propostas se refere a pontos de destaque que deveriam ser avaliados pelo ordenador de despesas no momento da tomada de decisão sobre qual consórcio contratar. No presente caso, foi o de indicar que a empresa que apresentou a proposta mais vantajosa à administração, embora não tivesse apresentado comprovação de cumprimento integral de requisito de capacidade técnica, apresentou comprovação equivalente a mais de 80% de requisito e ainda estava executando serviços que cumprem totalmente os quesitos em outro contrato, embora não tivesse apresentado o atestado de capacidade técnica referente à O&M (Operação e Manutenção, n.e.) do Eixo Leste.
  4. O Consórcio que opera o Eixo Leste foi contratado via Pregão Eletrônico nº 23/2019 realizado pela CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), e não por dispensa de licitação. Cabe ressaltar que a contratação em tela possui uma redução de tempo de contrato e escopo, pois trata apenas da O&M do Eixo Norte, que foi dimensionada para uma demanda emergencial.
  5. O uso da palavra alerta no relatório de análise da proposta não faz qualquer referência aos custos praticados nas planilhas orçamentárias. Por oportuno ressalta-se que os preços contratados resultam em um desconto de 7,58% sobre os preços de referências que atendem ao disposto no Decreto nº 7.983, de 8 de abril de 2013, pois foram adotados valores de insumos constantes das tabelas referenciais SICRO/DNIT, SINAPI, CODEVASF, ORSE, SBC e FENAM.
  6. O acidente, que infelizmente causou óbito das vítimas durante alagamento de casa de válvulas, aconteceu durante o trabalho conjunto de diversas empresas, inclusive da fabricante das válvulas. Portanto, não se pode atribuir ao consorcio contratado para O&M qualquer responsabilidade pelo ocorrido, sem a conclusão da devida apuração, e muito menos associar à não integralidade da observância do quesito técnico.
  7. Como já explanado, o risco técnico foi sim considerado, pois foi avaliado que o consórcio apresentou comprovação que atendia a 83,5% da exigência de um dos itens e ainda que o mesmo consórcio estava executando os serviços que corresponderiam a 100% da exigência técnica em outro contrato no Eixo Leste, contratado pela CODEVASF.
  8. Os custos que compõem as planilhas orçamentárias de todas as contratações do MDR são obtidos por tabelas nacionais de referência conforme determinado no Decreto nº 7.983, de 8 de abril de 2013.
  9. O MDR não tem qualquer governabilidade sobre os salários praticados por suas contratadas, pois as contratações se referem a serviços e não a terceirização de mão de obra.
  10. A dispensa de licitação foi publicada no Diário Oficial da União de 16 de outubro de 2020, seção 3, além disso, todas empresas líderes que estavam mobilizadas no PISF foram comunicadas por e-mail.
  11. Observa-se que a Magna, que faz parte do consórcio que operava o eixo leste, foi convidada por e-mail. Quanto à prestação dos serviços no Eixo Norte, pelos mesmos valores do Eixo Leste, a Administração não tem poder de determinar o preço de execução dos serviços, apenas o poder de limitar esses preços aos valores de referência, conforme definido no Decreto nº 7.983.
  12. Uma vez publicado o orçamento de referência, cada empresa apresentou suas propostas livremente conforme sua conveniência.
  13. No caso do contrato da CODEVASF, o consórcio apresentou um desconto consideravelmente superior ao ofertado para a operação do Eixo Norte, que possui características bem distintas. Destaca-se que há diferenças relevantes do ponto de vista operacional entre os Eixos Norte e Leste, bem como havia diferenças contratuais, como o prazo de execução, por exemplo, o que influi diretamente na formação de preço pelas empresas participantes do certame.
  14. A empresa SANART não foi convidada diretamente pelo MDR, no entanto não foi verificada nenhuma restrição à sua participação, tendo a mesma apresentado toda documentação necessária à sua habilitação.
  15. Ressalta-se que a dispensa de licitação foi publicada no Diário Oficial da União de 16 de outubro de 2020, seção 3, sendo aberto a participação de qualquer empresa interessada.”

No pronunciamento do dia 22 de março, em cadeia nacional, o então ministro Rogério Marinho teceu loas e autoelogios à velocidade com que o atual governo diz ter concluído as obras de transposição do São Francisco. A construção dos canais foi iniciada em 2007, durante o 2º mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que venceu um a um diversos adversários políticos da ideia de distribuir pelos sertões do Nordeste as águas do mais extenso rio nacional. Sobretudo políticos mineiros e baianos opunham-se à obra. “A transposição não tem donos”, tratou de dizer Marinho em seu discurso, para então se apoderar da transposição. “Mas, nós concluímos tudo em três anos”, disse. É meia verdade, ou, uma mentira inteira. Nem a transposição está 100% entregue, nem as obras podem ser consideradas integralmente concluídas – e restam os flancos abertos pelas inconsistências jurídicas da condução das obras, como a própria assessoria do MDR admite existir.  

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