Sala de jantar da ala residencial do Palácio Morumbi, sede do governo de São Paulo, fim de um almoço tardio de um dia de semana em janeiro de 1997.
– Perdemos tempo demais. O Fernando desperdiçou a força política dele, no início do mandato, mandando tese econômica para o Congresso. Tinha de ter mandado antes de tudo a Reforma Política. Aprovada essa reforma, o resto vinha por gravidade e por lógica – reclamava Mário Covas, governador paulista eleito pelo PSDB em 1994 em dobradinha com Fernando Henrique Cardoso, vitorioso na disputa presidencial esgrimindo o Plano Real contra Lula (PT).
Recebíamos, à mesa, o texto da sanção da Lei de Cabotagem (ou, abertura da navegação de cabotagem entre portos brasileiros a armadores privados, o que era proibido). Era uma convescote entre a ótima fonte e o repórter aplicado. À Lei de Cabotagem seguiam-se emendas constitucionais que privatizaram a exploração da rede de telefonia – fixa e móvel –, o setor siderúrgico, a privatização ou liquidação dos bancos estaduais e até mesmo a venda de operações petroquímicas e petrolíferas concentradas na mão do Estado.
Covas prosseguiu, profético:
– Para passar cada reforma dessas, o Fernando abre um balcão de negócios dentro da própria base do governo. Se fizesse a Reforma Política antes de tudo, repactuando o funcionamento dos partidos, instituindo a fidelidade partidária e até uma nova consulta popular sobre o Parlamentarismo, tudo ficaria mais claro e mais barato.
Naquele mesmo ano, meses depois, a única mudança política que viria a ser aprovada – a um elevadíssimo custo político e também financeiro, como revelaram reportagens à época – foi a criação do instituto da reeleição destinado a transformar em mandato de oito anos o mandato de quatro anos para o qual FHC fora eleito. Havia um silêncio complacente dos agentes do mercado financeiro, dos barões da indústria e da mídia tradicional à forma como votos eram cooptados nos balcões do Congresso. Nem mesmo o jornal Folha de S Paulo, que revelou documentadamente a compra de votos pela reeleição, transformou os furos jornalísticos em escândalo destinado a carimbar a trajetória política do presidente.
Estava desenhado o paradigma do “presidencialismo de coalizão”, testado já (e iniciado) pelo ex-presidente José Sarney no início da transição pós-ditadura e durante os jogos republicanos da Assembleia Nacional Constituinte (1987/88).
O mesmo baronato industrial e seus asseclas assentados nos postos executivos das grandes corporações, os mesmos players do mercado financeiro e as cúpulas dos mesmos veículos de comunicação da mídia tradicional trataram de perfilar por trás do discurso tosco do udenismo bissexto da Operação Lava Jato, a partir de 2014.
Quando se viram impotentes para vencer o PT e a escalada firme da ascensão social tornada viável aos estratos localizados na base larga da pirâmide da concentração de renda do Brasil (um dos países socialmente mais injustos do planeta), notadamente as classes C e D, a galera do udenismo bissexto flertou abertamente e depois casou com o golpismo de 2016.
Fingiam, hipocritamente, crer que o fim a que se destinava o golpe do impeachment sem crime de responsabilidade – “consertar os rumos da economia” – justificava o atalho de rasgar a Constituição e tirar do cargo uma presidente contra quem não conseguiam exibir acusações – nem mesmo saídas das vãs e vazias linhas de artilharia de festim de Curitiba, postadas nas trincheiras mercenárias comandadas pelo ex-juiz Sérgio Moro e por seu valete Deltan Dallagnol (enfant terrible do Ministério Público).
Bolsonaro, bolsonarismo e “Presidencialismo de Colisão”
A irresponsabilidade de quem caçava por atalhos conduziu a esses já longos três anos da Era Bolsonaro – nunca a Presidência da República esteve entregue a um ser tão desprezível, vil, perverso, desqualificado, despreparado e desajustado.
O País quebrou, a economia coleciona reveses e está em recessão, os dados da pandemia só são positivos graças à resiliência de governadores de Estado, secretários estaduais e municipais de saúde, ao Sistema Único de Saúde (SUS) e até mesmo à área técnica e de carreira da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Aliados à excelência científica da Fundação Oswaldo Cruz, ao Instituto Butantã e ao crédito que a média superior dos brasileiros dá à Ciência e às vacinas, os gestores de Estado da Saúde enfrentaram e venceram o obscurantismo bolsonarista.
A Era Bolsonaro é a vigência do “Presidencialismo de Colisão”. Ele testa diariamente a força e a resistência dos muros de proteção das instituições democráticas. Perdeu todas as batalhas até aqui, inclusive e sobretudo a “Batalha de Itararé” que anunciou para o último 7 de Setembro. O golpe não veio. Contudo, Bolsonaro cansa, quebra e tira a energia de uma Nação que está à deriva.
Intoxicada por discursos de ódio, é verdade que cada vez menos relevantes e já dando sinais de terem extenuado a população, a maioria politicamente sã do Brasil clama por uma reconciliação. É o antídoto às doses cavalares de veneno instaladas contra o povo brasileiro por um presidente antirrepublicano, iliberal e eternamente candidato (malsucedido) a ser um autocrata como Jair Bolsonaro.
A liderança que sair das urnas presidenciais de 2022, eleita para a Presidência da República, precisa encarnar esse espírito de reconciliação. No tabuleiro do xadrez político, só há um jogador monopolizando tanto as pedras pretas quanto as brancas: Lula, do PT. Só ele foi capaz de impor razoabilidade à disputa, convocando os seus e até os antagonistas a traçarem projetos de País capazes de devolver esperança e a necessária disposição para sonhar aos brasileiros.
Agora, os petistas precisam rascunhar até o fim do mês de março de 2022 o que seria um projeto de governo a fim celebrarem com PSB, PCdoB, PV – e, por que não especular?, com Rede e um PDT cujos movimentos levam a crer no abandono da candidatura de Ciro Gomes – a Federação Partidária da esquerda.
O instrumento das federações está posto à mesa e é uma ferramenta ousada para um País de costumes políticos toscos. As siglas que se reunirem sob o estatuto de uma delas, têm de permanecer unidas por quatro anos. A união, para produzir efeitos na consolidação de bancadas partidárias, fazendo com que legendas maiores, como o PT, auxiliem partidos menores como PCdoB e PV, precisa ser registrada em cartório seis meses antes da abertura das urnas de outubro. As regras do Direito Civil, portanto, as leis societárias cíveis, é que regerão a união política. As legendas não perderão nem suas identidades, nem seus números, nem seus orçamentos próprios. Entretanto, ganharão o dever de conduzir o projeto político fora do balcão de negócios em que se transformou o Congresso Nacional.
O instrumento da Federação Partidárias é um choque de governabilidade que inviabiliza o surgimento de novos Eduardos Cunhas, Arthures Liras ou Davids Alcolumbres no Parlamento brasileiro. Como advertia Mário Covas, o engenheiro civil de rara sabedoria filosófica, já em 1997, resolvida a Política, o resto vem – e vem mais barato.