Por João Gabriel de Lima
“Em relação à carnificina que provocam, as armas de uso individual podem ser comparadas às armas de destruição em massa”, disse Kofi Annan, ex-secretário-geral das Nações Unidas. A frase é de 2000. No ano seguinte, a ONU realizou em Nova York a Primeira Conferência Internacional sobre Armas de Fogo – o Brasil do presidente Fernando Henrique enviou uma das maiores delegações, com representantes do governo e da sociedade civil. Se existe um consenso no planeta Terra – aquele que é azul e, para espanto de alguns, redondo – é o que defende o controle das armas de uso individual. Tal entendimento, baseado em evidências e estudos acadêmicos, formou-se há mais de 20 anos. Da conferência de Nova York para cá vários países criaram leis nessa direção.
O espírito de tais leis – incluindo a brasileira, alinhada ao consenso internacional – é impedir que as armas turbinem os homicídios ou caiam nas mãos do crime. Os vários decretos do presidente Jair Bolsonaro sobre o assunto, incluindo os que foram publicados na sexta-feira de carnaval, vão na contramão desse espírito. Eles emasculam o Exército e a Polícia Federal em seu poder de fiscalizar os armamentos. No limite, dificultam a investigação de crimes por parte das polícias, como mostra Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé e mestre em segurança internacional. Ela é a personagem do minipodcast da semana.
Os que discordam do consenso – principalmente nos Estados Unidos – costumam brandir o exemplo do Canadá, país com legislação liberal e criminalidade baixíssima. No livro Armas para quê?, o professor Antônio Rangel Bandeira – pós-graduado em Ciência Política justamente no Canadá – afirma, com base em pesquisas, que a violência urbana é causada por pelo menos 40 variáveis. Elas estão praticamente ausentes no Canadá, onde há bem-estar social, polícia eficiente e alto grau de confiabilidade nos governantes. Em países como o Brasil, com altos índices de pobreza e desigualdade, corrupção minando as instituições policiais e desconfiança dos políticos, facilitar o acesso a armas é como jogar um fósforo aceso em chão de pólvora.
O Congresso brasileiro reflete o pensamento da maioria acadêmica. Os decretos de Bolsonaro foram criticados pela esquerda (Marcelo Freixo, do PSOL), pela centro-direita (Rodrigo Maia, do DEM), por aliados de Bolsonaro (Marcelo Ramos, do PL) e por alguns integrantes da bancada evangélica – que enfatizaram o caráter “anti-humano e anticristão” da medida, nas palavras de Eliziane Gama, senadora pelo Cidadania.
Em editorial publicado na quarta-feira, o Estadão lembrou que o presidente “já deu a entender que defende o uso desse armamento contra inimigos políticos”. Na inesquecível reunião ministerial de abril de 2020, Bolsonaro afirmou que, “se estivesse armado”, o povo “iria para a rua” em desobediência às medidas de alguns governadores para combater a pandemia.
Na semana da posse de Joe Biden (defensor, aliás, do controle de armas), esta coluna listou medidas sensatas de diversos governantes mundo afora – num indício de que a Terra, depois de um momento de loucura, voltaria a ser redonda. Cabe ao Congresso colocar o Brasil na rotação normal do planeta e gongar o faroeste caboclo. Se não fizer isso, continuaremos a ser o país que – seja no combate à pandemia, seja no controle de armas – ignora o conhecimento baseado em evidências. O país da Terra plana.
*ESCRITOR, PROFESSOR DA FAAP E DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA NA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Leia o texto publicado originalmente no Estadão clicando aqui: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,faroeste-caboclo-no-pais-da-terra-plana,70003621853