Documentário ‘Alvorada’, sobre impeachment de 2016, é ‘Big Brother’ no palácio

André Miranda – O Globo

Documentário sobre a rotina dentro da residência oficial da Presidência no período em que Dilma Rousseff foi afastada pela Câmara de Deputados e esperava o veredicto final do Senado sobre seu impeachment, “Alvorada” deixa para o fim uma cena síntese do sentimento coletivo de parte do país. Com a saída da presidente já decidida, o filme exibe um urubu preso num hall de entrada do Palácio da Alvorada. O bicho anda para um lado, bate a cabeça no vidro,fica por ali meio esperando algo que ele não tem muito ideia do que será.

O que acontece depois com aquele urubu, com o Palácio da Alvorada e com o Brasil? Isso o documentário não mostra, porque não importa mesmo para a história que as diretoras Anna Muylaert e Lô Politi quiseram contar. Mas aquele urubu é um dos muitos elementos da ótima construção narrativa de “Alvorada”. O filme é mais um a abordar o impeachment de Dilma, em 2016, e é natural que o cinema se debruce assim sobre um episódio tão impactante e que ainda hoje gera tantas discordâncias no Brasil.

Depois de boas obras como “Democracia em vertigem”, “Excelentíssimos” e “O processo”, o documentário de Muylaert e Politi aposta num cinema de observação inteiramente passado na casa da presidente. Mesmo quando ela sai para se defender no Senado, o ponto de vista é dos funcionários e até dos corredores vazios que “testemunham” Dilma falar pela televisão.

O tempo que a equipe conseguiu dentro do Planalto gera situações bem-vindas para o cinema documental, a da metáfora da “mosquinha na parede” — é aquela câmera em que o personagem sabe que está sendo filmado, mas em alguns momentos se esquece que a gravação pode levar a uma exposição maior do que ele gostaria, algo na mesma gênese teórica do “Big Brother”. Para retratar o jogo de cena político, é bastante reveladora essa possibilidade de tornar público o que seria apenas privado.

Além das muitas sequências da relação de Dilma com assessores, garçons, visitantes e jornalistas, ouve-se a presidente refletir, por exemplo, sobre a origem do mal. Ela cita livros de John Milton, José Saramago, José Guimarães Rosa e afirma que não acredita na maldade. “Eu acho fantástico aqueles que descreveram o diabo, eu acho o diabo uma criação absolutamente intrigante (…) O grande mal tem que ser uma construção de ficção”, diz Dilma, recusando-se a tachar seus detratores políticos como simplesmente vilões. 

Em outra ocasião, a presidente se reúne com políticos apoiadores, e a câmera se mantém ali próxima “roubando” a imagem e o áudio. O tema da conversa é como conseguir votos no Senado para evitar o impeachment, eles fazem contas e começam a se questionar sobre o que podem fazer para aumentar o número, até que Dilma mira a lente e diz: “Olha eu vou pedir para…”. E corta.

“Alvorada” é, assim, um filme que não interessa apenas a espectadores passionais dentro do amor e ódio político implementado no Brasil. Trata-se de cinema de grande qualidade.

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