Foto: José Paulo Lacerda/Estadão Conteúdo

De Sarney a Bolsonaro, tradição de CPIs molda relações democráticas no Brasil

Eumano Silva e Marco Justo Losso, colaboração para a CNN

O Brasil dava os primeiros passos em ambiente democrático depois da ditadura militar quando o Senado instalou, em 1988, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar denúncias de cobrança de propina para liberação de verbas federais. Entre os acusados estava Jorge Murad, na época secretário particular e ex-genro do então presidente José Sarney. Os recursos beneficiaram políticos aliados do Palácio do Planalto.

Conhecida como “CPI da corrupção”, a comissão de senadores realizou a maior parte dos trabalhos durante o funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte, encerrada em outubro de 1988. Em tempo de reconquista de prerrogativas, o Congresso se fortaleceu frente ao Executivo com as investigações. O relatório final pediu o impeachment de Sarney e dos ministros Antônio Carlos Magalhães, das Comunicações, e Maílson da Nóbrega, da Fazenda. A Câmara arquivou o pedido.

Pelas circunstâncias políticas, com ampla repercussão na sociedade, as investigações da “CPI da corrupção” influenciaram o novo texto constitucional nos trechos relacionados às comissões de inquérito. Assim, a legislação democrática incorporou a vocação fiscalizatória caracterizada no trabalho do grupo de senadores. Com isso, as CPIs ganharam poderes de autoridades judiciais, como quebra de sigilos bancários, fiscais, telefônicos, e decretação de prisão.

A origem da pizza

O papel das comissões de inquérito determinado pela Constituição foi reafirmado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), na liminar do dia 8 de abril, quando determinou a instalação pelo Senado da CPI proposta para investigar eventuais omissões do governo federal no combate à pandemia de Covid-19: “Trata-se de garantia que decorre da cláusula do Estado Democrático de Direito e que viabiliza às minoras parlamentares o exercício da oposição democrática. Tanto é assim que o quórum é de um terço dos membros da casa legislativa, e não de maioria.”

As investigações de 1988 tiveram como desdobramento a projeção do nome do senador Itamar Franco (PMDB-MG) no cenário nacional como combatente da corrução. Com essas credenciais, foi convidado por Fernando Collor para compor a chapa presidencial eleita no ano seguinte.

Os novos poderes concedidos às comissões de inquérito em pouco tempo provocaram mais uma reviravolta na vida de Itamar e, também, na política brasileira. O Congresso instalou em junho de 1992 uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) com o objetivo de investigar denúncias contra Collor feito pelo irmão mais novo, Pedro. Enquanto as CPIs são compostas exclusivamente por senadores ou deputados, as CPMIs têm integrantes das duas casas legislativas.

As acusações de Pedro estavam ligadas ao empresário Paulo César Farias, o PC, tesoureiro da campanha presidencial do irmão. Pouco mais de dois meses depois de instalada, a “CPI do PC Farias” provocou o afastamento de Fernando Collor do Palácio do Planalto – ele renunciou ao mandato pouco antes do início do julgamento de seu impeachment no Senado e a questão acabou decidida somente no Supremo. Foi o primeiro impeachment sob as regras da Constituição. Itamar Franco, então, concluiu o mandato presidencial.

Na “CPI do PC Farias”, tornou-se popular na política o uso da expressão “tudo acaba em pizza”. O termo foi usado pela secretária Sandra Regina de Oliveira durante depoimento à comissão. “Se tudo isso acabar em pizza, como alguns querem, será o fim do país”, afirmou a secretária.

Desde então, sempre que uma comissão de inquérito é instalada surgem dúvidas se atingirá os objetivos, como se deu com a “CPI do PC Farias”, ou se terminará em pizza, a exemplo do que ocorrera quatro anos antes com os resultados da “CPI da corrupção”.

Dos Correios ao mensalão

Um ano depois da queda de Collor, outra investigação abalou o mundo político. Denúncias feitas por um assessor da Comissão Mista de Orçamento, José Carlos Alves dos Santos, levaram à criação de uma CPMI, apelidada de “CPI dos Anões do Orçamento” que levou à cassação de seis deputados, entre eles o ex-presidente da Câmara Ibsen Pinheiro (PMDB-RS). 

Outros dois renunciaram para não perder os direitos políticos. As investigações focaram no desvio de verbas de emendas parlamentares ao orçamento federal. Apesar das punições, os resultados ficaram aquém das expectativas, pois as denúncias atingiam cerca de duas dezenas de congressistas.

Durante os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Congresso instalou três comissões de inquérito simultâneas. Uma investigou os Correios, outra apurou irregularidades relacionadas a bingos, e a terceira tratou das denúncias referentes ao escândalo conhecido como mensalão. Das três, a mais produtiva foi a dos Correios, responsável pela apuração que levou à condenação de 25 políticos e empresários no julgamento do Mensalão, realizado pelo STF em 2012.

Na mesma época, a “CPMI dos sanguessugas” aprofundou investigações da Polícia Federal sobre recebimento de propina, por parlamentares, provenientes de verbas desviadas de emendas parlamentares destinadas à compra de ambulâncias. A comissão terminou sem punições.

Uma cachoeira de fracassos

Pelo histórico do Congresso, as comissões de inquérito produzem resultados mais rigorosos na Câmara do que no Senado. O primeiro senador cassado depois da redemocratização foi Luiz Estevão (PMDB-DF), um dos protagonistas do desvio de R$ 169 milhões da obra do Fórum Trabalhista de São Paulo. O parlamentar perdeu o mandato em junho de 2000 em decorrência dessas denúncias. 

Nas duas décadas seguintes, CPIs que surgiram sob expectativa de punições exemplares dos envolvidos, pode-se dizer, acabaram com gosto de pizza. São os casos das “CPI do Cachoeira”, do Futebol e da Petrobras.

A primeira investigou as relações entre o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, com parlamentares. Apesar de uma lista inicial bastante extensa, levou à perda de mandato de apenas um político, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). A CPI do Futebol, que aconteceu entre 2015 e 2016, abordou negociações da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e chegou ao fim sem indiciar ninguém – uma outra investigação sobre o esporte, também sem resultados, já havia acontecido quinze anos antes. 

Mais rumorosa que as duas anteriores, a CPI da Petrobras, que também teve sua instalação determinada pelo Supremo, tinha como objetivo aprofundar as investigações da Operação Lava Jato. Na prática, nada avançou e terminou sem acrescentar fatos novos ao caso.

CPIs de outrora

Assim, entre sucessos e fracassos, as comissões de inquérito se firmaram no período democrático como o mais ostensivo instrumento de fiscalização do Poder Executivo.  “A Constituição de 1988 deu ao Parlamento instrumentos de enfrentamento dos outros poderes, como aconteceu na CPI do Judiciário”, afirmou o historiador Frederico Tomé, professor do Centro Universitário Ceub, de Brasília, em entrevista à CNN Brasil. “A exigência de apenas um terço da assinaturas favorece as ações da oposição”, acrescenta.

O historiador lembra que, no Brasil, as investigações parlamentares existem desde o tempo do Império. Com o formato de Comissões Parlamentares de Inquérito, esse instrumento surgiu na Constituição de 1934. Uma das mais marcantes CPIs desta época foi instalada em 1953 para investigar empréstimos federais feitos pelo governo Getúlio Vargas ao empresário Samuel Wainer para a fundação do jornal “Última Hora”.

A exploração dos fatos tratados pela comissão contribuiu para o desgaste político de Getúlio, pressionado pelos opositores até cometer suicídio, no ano seguinte. Frederico Tomé também lembra que, durante a ditadura, as CPIs foram esvaziadas, embora ainda existissem. Nesta época, as investigações mais consistentes trataram de narcotráfico e do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha. Não tiveram efeito punitivo. Com a redemocratização, adquiriram a força que as transformaram em maior palco para a ação política das minorias no Parlamento.

Agora, com a abertura de mais uma CPI voltada para apuração de atos do Poder Executivo, o Congresso volta a atrair as atenções dos brasileiros para a capacidade e o alcance das investigações parlamentares. 

E a da Covid?

Com a instalação de uma CPI no Senado sobre a atuação do governo federal no combate à pandemia do coronavírus e a história recente da democracia pautada por investigações dessa, pergunta-se o papel desse tipo de comissão em 2021. 

Para o cientista político José Álvaro Moisés, professor da Universidade de São Paulo (USP), a CPI da Covid pode levantar informações consistentes que indiquem omissões do governo federal na condução do combate à pandemia, mas é pouco provável que haja resultados concretos, como punições ou um pedido de impeachment, por exemplo.

“Como em toda CPI, o resultado depende muito de quem serão o relator, os membros e o presidente da comissão. A chance de se produzir informação nessa CPI é grande. No caso do presidencialismo brasileiro, embora CPIs sejam instrumento da minoria, as coalizões majoritárias podem definir o presidente e o relator”, afirma Moisés. 

Tudo vai depender do escopo e de como se dará a relação maioria/minoria no Senado, acredita Marco Antônio Teixeira, cientista político e pesquisador do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGVceapg). “Apesar de ser técnica, a produção de fatos que podem ser revelados vai impactar a opinião pública e criar uma pressão para que a CPI resulte em alguma coisa concreta”, declara Teixeira. 

Ele acrescenta que a eficiência de uma CPI está diretamente relacionada ao relatório final e ao prazo de conclusão das investigações. “Potencial para vingar a CPI da Covid tem. Dados existem. Falta de oxigênio, compra de vacinas, falta de kit intubação, críticas ao isolamento social e ao uso de máscaras. Agora, precisa ter um relatório consistente. Se tiver um relatório light, não terá impacto.” Moisés conclui: “Como se costuma dizer em Brasília, CPIs: sabe-se como começam, não se sabe como terminam.”

Publicado inicialmente em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/04/16/historia-recente-das-cpis-no-brasil

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EUMANO SILVA

Eumano Silva, 56 anos, jornalista, formado pela Universidade de Brasília, cobre política desde a Assembleia Nacional Constituinte. Trabalhou nos jornais Correio Braziliense, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, revista Veja, nos sites Congresso em Foco e Metrópoles, chefiou as sucursais das revistas Época e Istoé em Brasília e foi editor-executivo da revista Veja Brasília. Atuou como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade. Escreveu os livros "Operação Araguaia", "A morte do diplomata" e "O levante dos Ribeirinhos". Ganhou os prêmios Esso (2003), Jabuti (2006) e Excelência Jornalística (2019), na categoria meio ambiente da Sociedade Interamericana de Imprensa.

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