Amazônia é sertão

Por Lúcio Flávio Pinto

Minha família é um universo microscópico da história da Amazônia, integrada por migrantes e nativos. Meu avô materno era um português que foi ser guarda-livro (o atual contador) num seringal em Boca do Acre, onde o rio Acre se encontra com o Purus.

Apesar do nome, o município fica no Estado do Amazonas, embora Manaus esteja a mais de mil quilômetros em linha reta e Rio Branco a 145 quilômetros da capital de Boca do Acre. Caso exemplar da irracionalidade na organização territorial centralizada, imposta a partir do topo do poder nacional (um Estado unitário numa federação de perna quebrada), incapaz de compreender e traduzir um espaço gigantesco como o da Amazônia.

José Gomes de Faria chegou ao seringal, um dos maiores dos altos rios, quando a produção de borracha estava em declínio. Com a filha do dono do seringal, com quem casou, foi para Santarém, no Pará, onde o irmão mais velho crescia nos negócios ligados ao extrativismo, a atividade econômica predominante na região até os anos 1960. Manuel se tornou um dos homens mais ricos da cidade, que era a terceira mais importante da Amazônia, depois de Belém e Manaus.

Sua esposa morreu e a filha mais nova, minha mãe, com menos de um ano, foi mandada para que uma família estabelecida no Lago Grande de Franca a criasse. Numa paisagem típica da civilização ribeirinha amazônica, ela ficou até os oito anos, convivendo com os animais, correndo pela mata, cujos segredos ia descobrindo, se alimentando de peixe, livre de convenções e regras urbanas. Uma cabocla aculturada, caiada de branco pela miscigenação.

Meu avô paterno era um típico habitante do sertão cearense. Sua mulher também era de São Francisco do Canindé. A seca nordestina e as notícias promissoras sobre a borracha o fizeram migrar por duas vezes para a Amazônia, também para os altos rios do Acre e, depois, para o Acará, uma área de grande tradição no Pará, berço da maioria dos líderes da revolta da cabanagem (além dos cearenses).

Na primeira, fracassou. Voltou à terra natal. Mas nela não conseguiu mais se fixar. Retornou à Amazônia, abrindo comércio em Santarém, no bairro pobre da cidade (orgulhosa de sua fisionomia portuguesa), sugestivamente chamado de Aldeia. Foi nesse local que se constituiu a mais importante civilização indígena da Amazônia, dos Tapajó, massacrada e extinta pelo colonizador português.

Filho de cearense, era tratado pejorativamente por arigó. Meu pai, que nasceu em solo paraense, conseguiu superar os preconceitos, fazer carreira empresarial e política, e se casar com a bela Iraci, membro de uma das mais influentes famílias locais. Uma das ramificações da família à qual minha mãe se incorporou, através da irmã mais velha, tinha raízes em um dos dois barões santarenos.

Não narro em resumo essa história por narcisismo ou pretendendo cobrir de lantejoulas minha ascendência. Decidi quebrar a sequência de artigos objetivos com este relato pessoal porque a consulta que venho fazendo a fontes escritas, fotografias, mapas e noticiário da imprensa foram me conduzindo a uma constatação desoladora: a microscópica parcela de um universo caleidoscópico, como a Amazônia, está desaparecendo.

Embarcando no satélite do Google Earth, fui a Boca do Acre, Lábrea, aos rios Purus e Acre, a Santarém, à bacia do rio Arapiuns, do Tapajós, ao médio e alto Xingu. Busquei informações atualizadas sobre cada um dos locais. A conclusão: o processo de destruição da Amazônia nesses pontos cada vez mais a oeste e ao norte é o mesmo das partes a leste e ao sul, a devastação terrível dos vales do Araguaia, Tocantins e Xingu, do lado direito do rio Amazonas, com intrusões crescentes sobre os afluentes da margem esquerda.

O que se fala nesses locais é de grilagem de terras, desmatamento ilegal, trabalho escravo, crimes de encomenda, violência, brutalidade. Colocando a floresta abaixo, abrindo estradas que permitem a ocupação desordenada e caótica das suas margens, expandindo as frentes pioneiras numa velocidade muito superior à do aparato estatal, o que impede a vigência das leis e o respeito ao ser humano, bloqueando as verbas para conhecer melhor a maior reserva natural do planeta antes de explorá-la, a expansão da atividade econômica é a decretação do fim da Amazônia, tal como ela é, tal como nela viveram meus antepassados vindos de fora ou nascid os em seu ventre fecundo. A Amazônia está virando sertão.

Em 1953, o governo federal decidiu que essa imensa combinação de água, vegetação e luz tinha que ser incorporada à máquina de produção do país. Para realizar a tarefa, criou o primeiro órgão de planejamento regional do Brasil, a SPVEA, depois substituída pela Sudam. A Amazônia cresceu quantitativamente como nunca. Para se distanciar do que era e se tornar o que o poder central quer que seja.

Coincidentemente, nesse mesmo ano foi lançada a edição em língua portuguesa de Uma comunidade amazônica –Estudo do Homem nos Trópicos, do antropólogo norte-americano Charles Wagley (1913-1991), que vivera no Pará. Seu livro é um dos clássicos da antropologia e da bibliografia amazônica.

Com a sabedoria que uma longa convivência com os mais antigos moradores da Amazônia, estabelecidos nas margens dos rios, em secular processo de acomodação, Wagley observou, quase 70 anos atrás:

“Uma nova sociedade não pode nascer do nada; deve ser construída a partir de antecedentes históricos. A nova sociedade que o Brasil pretende criar na Amazônia terá por base o conhecimento que o povo dessa região acumulou durante séculos, dos tempos aborígenes ao presente”. Acrescentou que essa “é uma herança rica que jamais deverá ser ignorada na moderna conquista da Amazônia”.

Lamentavelmente, a conquista da Amazônia é uma atualização ampliada e piorada do passado colonial, que ignora a herança da história.

compartilhe:

Twitter
Telegram
WhatsApp

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress