Por Florência Costa – Projeto Colabora
Na tarde de 17 de agosto de 2009 peguei um avião-cacareco da empresa afegã Kam no aeroporto de Nova Delhi, onde vivia, e desembarquei em Cabul. Logo na primeira hora de chegada ao Afeganistão aprendi que pressa era sinônimo de sobrevivência por lá.
A pousada Gamdamack Lodge não havia mandado o carro blindado que prometera e tive que arranjar um táxi simples no aeroporto. Ignorei as advertências de “cuidado para não ser sequestrada, não pegue táxi de desconhecido”. Cheguei diante no endereço que tinha em mãos como sendo da pousada, no centro de Cabul. Calmamente abri a porta do carro, após pagar o motorista. Mas logo vi homens armados de metralhadora gritando do lado de fora, ordenando que eu voasse do carro para dentro de um portão de ferro.
Tive três minutos para desembarcar. Agarrei a mala e atravessei o portão, que foi fechado imediatamente, com toda a força. Não havia letreiro nenhum que identificasse a pousada. Estava no lugar certo ou aquilo era uma cilada?
Acabei aprendendo que na cidade onde eu iria passar uma semana cobrindo as eleições presidenciais não havia estacionamento: os carros tinham alguns minutos para desembarcar passageiros para evitar atentados à bomba do Talibã. Logo após entrar no portão, vi um pátio com um muro e ao lado, alguns outros homens armados fumando e conversando. O muro parecia um paredão de fuzilamento. Mas logo avistei uma guarita num canto, com um sistema de segurança parecido com o dos bancos hoje. Ao passar uma roleta, a porta de trás é trancada. Após tirar tudo de metal da bolsa e passar por detectores, a segunda porta se abre e você se depara em um segundo pátio. Aí sim, vê a pousada, um casarão do século 19 que lembrava os tempos das fracassadas invasões britânicas.
A pousada era administrada desde 2002 pelo jornalista britânico Peter Jouvenal. O nome Gandamack soava como outra advertência: era o lugar onde ocorreu um massacre de soldados britânicos e civis por afegãos, em 1842. Foi uma das maiores derrotas estrangeiras no Afeganistão. Logo ao entrar na Gandamack Lodge, vi uma incrível coleção de armas do século 19 em um corredor. Após o check-in, o funcionário me mostrou o bunker com coletes à prova de balas, capacetes e uma rota de fuga em caso de ataque do Talibã.
Em 2017, oito anos após a minha visita a Cabul, soube que a Gandamack havia sido fechada por ordem governamental. Famoso abrigo de estrangeiros, a pousada era um alvo certo de um Talibã cada vez mais dominante. A volta ao poder era favas contadas. No terceiro dia em Cabul, ao ir de carro pegar a minha credencial de jornalista, o táxi foi parado por um comboio de militares americanos, que gritaram e enfiaram as metralhadoras na janela do motorista. Ele mostrou documentos e os soldados mandaram ele voltar. Um carro-bomba havia explodido logo adiante, ao lado de um comboio da coalizão internacional, matando várias pessoas.
No caminho de volta para a pousada, eu percebi pela primeira vez as “almas penadas”: veteranos de guerra sem perna ou sem braço que pediam ajuda aos motoristas. A Cabul de agosto de 2009 era uma cidade amedrontada, desiludida, esfarrapada. Eu já havia sentido que o Talibã não estava para brincadeira desde a manhã seguinte à minha chegada. Os hóspedes foram chacoalhados às 7h com o estrondo de um foguete, que atingiu o palácio do então presidente (reeleito naquele pleito) Hamid Karzai, que ficava ali pertinho. No café da manhã, soube pelos outros hóspedes, quase todos jornalistas, que o presidente havia escapado dessa porque estava em um abrigo.
O Talibã havia prometido atrapalhar aquela que seria a segunda eleição após a invasão ocidental. Os extremistas ameaçavam explodir locais de votação e cortar dedos de eleitores. Aquele era o oitavo ano após a ocupação das forças de coalizão ocidental. Mas eu já havia entendido logo de cara que aquela seria mais uma invasão estrangeira que daria com os burros n’água e lembrei do vaticínio de John Lawrence, vice-rei da Índia em 1867: “O afegão vai aturar a pobreza, a insegurança na vida, mas não vai tolerar um governo estrangeiro. No momento que ele tiver uma chance, ele vai se rebelar”. Isso aconteceu com britânicos, russos e agora, com os norte-americanos.
Pobreza, corrupção e criminalidade
O Afeganistão que eu conheci em 2009, uma sociedade ferida por anos de invasões e guerras, tinha 40% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, estava mergulhado em corrupção, sofria com o desgoverno, com a criminalidade e com o tráfico de drogas (ópio). A expectativa de vida média de um afegão era de apenas 43 anos, metade da de um americano. Naquele momento já era visível a decepção geral com a esperada ajuda internacional que beneficiava uma elite e não chegava ao andar de baixo.
Os personagens com quem me deparei naquela cobertura ressuscitaram na memória neste domingo, 15 de agosto. Um deles, um jovem taxista chamado Ali, não havia votado: “Por que vou arriscar a minha vida se o próximo presidente será escolhido por americanos ou britânicos?”. Dameen, outro motorista que conheci tinha percepção semelhante: “Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres estão mendigando”. Os afegãos que não entravam no radar das endinheiradas agências internacionais e não conseguiram empregos no governo engrossavam muitas vezes as fileiras do crime organizado e do tráfico de drogas. O Afeganistão era então o maior fornecedor mundial de heroína. Wali Karzai, meio-irmão do presidente apoiado pelos Estados Unidos, era acusado de ser o “don” da máfia de Kandahar e o supervisor do cartel de drogas local.
A população se ressentia também da prepotência dos soldados americanos, que costumam insultar os afegãos nas ruas. “Todo mundo diz que está aqui por causa da gente. Mas eles estão aqui pelos interesses deles. Estão nos manipulando”, dizia Aamir Hassan, jornalista da Associação da Imprensa Livre do Sul da Ásia. Me lembro também das sábias palavras do escritor e jornalista veterano Edward Girardet, que vive na Suíça, mas naqueles dias da eleição recolhia informações para um livro: “Não se vence essa guerra militarmente. Não há saídas rápidas e fáceis no Afeganistão”.
Um dos locais que visitei foi a famosa Shah M Book, na esquina da avenida Shar-e-Now, na Zona Sul de Cabul: é a livraria de O livreiro de Cabul, da jornalista norueguesa Asne Seierstad. Aj, então um musculoso jovem de 20 anos, vestido com uma camiseta do Hard Rock Cafe de Nova Delhi, contou tudo sobre o submundo de Cabul, com seus massage parlours, bordéis e nightclubs que proliferaram após a queda do Talibã. Para Aj, os políticos afegãos estavam vendendo o país para os estrangeiros: “Que futuro um país pode ter se o irmão do presidente está metido com a venda de drogas? Eu não gosto do Talibã, mas pelo menos eles coibiam o tráfico de drogas”.
O que será das mulheres no Afeganistão?
Hassina Syed, de 30 anos, a-esposa-afegã-olhos-cor-de- mel de Peter Jouvenal, me contou que era melhor eu cobrir os cabelos com um lenço (hijab) caso eu quisesse bater perna pela misteriosa capital afegã, essa planície a 1.800 metros acima do nivel do mar, cercada pelas montanhas da cordilheira do Hindu Kush. No ano anterior, recordou Hassina, uma jornalista norueguesa que não usava o hijab, havia sido morta pelo Talibã. Mesmo não sendo obrigadas por lei, era comum ver as afegãs de burqa, principalmente aquelas tradicionais azuis: a cobertura as livravam dos olhares masculinos estranhos naquela sociedade conservadora. Mas para as estrangeiras as regras não escritas eram diferentes. Havia um ditado por lá: no Afeganistão tem homem, tem mulher e tem mulher estrangeira. Nós só devíamos usar burqas se fossemos perambular pelo interior do país.
Formada em Medicina, Hassina era mãe de duas filhas, uma de 3 e outra de 4 anos. Nunca esqueci de como ela projetava o futuro das filhas: “Meu sonho é que pelo menos uma delas seja engenheira”. Jornalista mulher tem algumas vantagens. Em sociedades muito conservadoras, onde as mulheres são ensinadas a ficar distante dos homens estranhos, as entrevistadas ficam à vontade com você.
As afegãs eram muito simpáticas e curiosas comigo. Desde as policiais no aeroporto (uma delas me pediu um batom que eu tinha na nécessaire) até donas de casa que entrevistei nas seções eleitorais no dia da votação. Elas mesmas vinham na minha direção conversar. Uma delas, Jalala, analfabeta, coberta com uma burqa, acompanhada do irmão, o médico Taj Mitalal, se aproximou bem devagar de mim. Ela estava curiosa para saber da onde eu era. Outras duas se aproximaram em seguida: Malika e a amiga Zeinab. Esta última olhava para todos os lados, insegura. “As pessoas estão com medo e desiludidas porque a situação está muito difícil. Não sei o que vai acontecer com o Afeganistão”, disse Zeinab.
Hoje me pergunto: O que será dessas mulheres que conheci agora que o Talibã voltou ao poder? E as mais simples do povo, aquelas que eu via de burqa, pedindo “bakshish” (esmolas) no trânsito ao lado de crianças esfomeadas?
Já em 2009, ninguém mais acreditava em contos de salvadores da pátria no Afeganistão. Vinte anos depois de os EUA declararem que iriam fazer o país voltar à Idade da Pedra por ter abrigado Osama bin Laden , a intervenção se esfarelou de forma acachapante para Washington e desnudou a realidade: o plano de reconstrução afegã era uma ficção, uma ilusão que se desmanchou no ar poeirento de Cabul.
Quando o Congresso americano aprovou por quase unanimidade a invasão, a única voz discordante foi a da deputada democrata Barbara Lee: “ Este é um assunto muito complexo e eu não acredito que uma ação militar vai evitar futuros atos de terrorismo internacional. Alguns de nós devem dizer para esperar um minuto e pensar sobre as implicações desta nossa ação, para que ela não fuja ao nosso controle”. A parlamentar foi alvo de insultos e ameaças e teve que ser protegida por seguranças armados após o voto.
A fama do Afeganistão de túmulo de impérios e de atoleiro sem fim se confirmou neste 15 de agosto, com a volta ao poder do Talibã, o mesmo que havia sido vitaminado pela CIA para lutar contra os soviéticos. “Não veremos pessoas sendo retiradas às pressas dos tetos da embaixada dos EUA no Afeganistão”, prometeu Joe Biden, em uma referência à cena humilhante dos americanos fugindo de Saigon. Mas a promessa foi descumprida.
Os EUA corriam para resgatar seus últimos diplomatas e funcionários, abandonando milhares de afegãos que trabalharam para as forças invasoras. Tudo o que os americanos tinham neste 15 de agosto era pressa. A mesma pressa que aprendi como sendo fundamental na hora de sair de um carro em Cabul.
*Florência Costa era correspondente do jornal O Globo na Índia quando fez a cobertura das eleições presidenciais no Afeganistão em agosto de 2009