Reflexões de dois velhos conhecidos do presidente da República na boca do fogo, à hora do jantar, dizem muito sobre ambiente político de Brasília
Por Luís Costa Pinto
O celular tocou às 20h12min da última segunda-feira. Preparava-me para refogar o arroz ao qual juntaria o alho-poró e o creme caseiro de castanhas para um risoto. Havia encerrado o expediente no home office dez minutos antes. Meu escritório – minha sala de entrevistas, meu laboratório de ações, enfim – está em casa há mais de 20 anos, desde muito antes da pandemia de 2020. Como a minha mulher, invariavelmente, só retorna de suas aulas no estúdio de yoga depois das 21h30min, sempre tenho margem para meditar e refletir enquanto preparo o jantar; ou para cozinhar enquanto medito e reflito sobre o dia, a conjuntura e o mundo. Tanto faz a ordem das prioridades. Essa é a nossa dinâmica. “José Genoíno”, indicava a tela do aparelho. Tinha pensado em ligar para ele pouco antes, cedo da tarde, mas, não quis incomodar. Arrastei o círculo verde estilizado com uma seta, ícone dos Androids, para o centro da tela.
– Alô?
– Companheiro Lula, boa noite! Aqui é o camarada José Genoíno Neto ligando para dizer que sobrevivi à cirurgia, o processo foi mais rápido do que todos imaginávamos, estou bem e voltei para casa desde ontem. Às suas ordens.
A altivez e o tom galhofeiro da voz do ex-deputado mascaravam o timbre nitidamente cansado. O ex-guerrilheiro que se embrenhou nas matas pré-amazônicas das franjas do Araguaia no fim dos anos 1960, que foi Constituinte em 1987-88, ex-presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, e agora é um irresignado professor aposentado, retirou um extenso tumor maligno do intestino na segunda semana de janeiro. Portador de um aneurisma de aorta não dissecado, sobrevivente de três malárias dos tempos da guerrilha contra a ditadura e portador de insuficiência cardíaca, foi submetido a cirurgia de alto grau de risco. Não eram à toa as preocupações de quem admira sua trajetória, gosta dele e preza por sua amizade.
– Salve, salve! Ia te ligar à tarde, mas, enrolei-me numa série de reuniões, pré-produções, gravações e entrevistas para um podcast e um livro nos quais estou trabalhando e não consegui.
– Ligo para dizer que estou vivo. E também estou assustado.
– Só o fato de você me ligar já é grandioso. Assustado estamos todos. Está ruim, não é, companheiro Genoíno?
Vinte e dois anos, uma geração, nos separam. Em 1968, quando nasci, Genoíno estava se embrenhando na selva amazônica às margens do Rio Araguaia. Militei no Movimento Estudantil já sob os ventos da transição democrática do período de José Sarney e sempre trilhando o caminho do meio. Tinha apoio da militância do PT nas disputas acadêmicas, porém nunca me filiei à legenda. Logo que cheguei a Brasília, em 1991, para atuar profissionalmente como jornalista, transferido da sucursal do Recife de uma revista que fez algum sucesso há 30, 35 anos, Veja, para a sucursal brasiliense, converti o ex-guerrilheiro em fonte das melhores. Ele já estava amansado pelos jogos da política institucional. Depois, o convívio nos tornou bons amigos – respeitosamente divergentes em alguns momentos, implacavelmente atuantes e convergentes em nome da notícia e da democracia quando necessário.
Genoíno não precisou falar nada para que eu compreendesse que estava assustado com os rumos do Governo no início da segunda metade do terceiro mandato do presidente Lula. No mesmo dia em que saía do hospital onde extirpou o tumor maligno do abdômen, um tresloucado Donald Trump era empossado pela segunda vez na presidência dos Estados Unidos – agora, encarnando a personagem de titã da extrema-direita global, e não mais no papel de falso outsider bizarro – e Lula reunia seu ministério na Granja do Torto, em Brasília, para fazer com atraso o planejamento da equipe até 2026.
Aos subordinados, o presidente da República fez estudado desabafo sobre as incertezas de seu futuro político, deslindou platitudes de comunicação e pela enésima vez apelou para o espírito de grupo e para a responsabilidade pública determinando aos auxiliares que não inventassem nada novo que fosse lançado provocando ruídos de comunicação e terremotos na avaliação da gestão.
Liderando uma equipe que patina na política, erra na comunicação e tem imensas dificuldades de fazer entregas objetivas à sociedade – apesar de ser um Governo extremamente bem-sucedido na economia, na restauração da mobilidade e inclusão social e no aconselhável retorno da institucionalidade aos processos administrativos de Estado – Lula sabe que não tem tempo a perder. Sabe, também, que seus auxiliares de 2023 para cá, assim como a linha de comando do Partido dos Trabalhadores, sempre estiveram aquém da História dele. Não representam o que havia de melhor no arco-íris de diversos matizes que se uniu durante os tempos de chumbo da ditadura e na Era Trágica do período 2016-2022 contra os golpes e ardis antidemocráticos e dos desafios oceânicos de resgatar as abissais injustiças sociais de um Brasil ainda muito desigual.
Mais solitário do que em tempos idos, pior assessorado do que nos dois mandatos anteriores, desprovido de mão-de-obra equipada de ousadia política e bravura existencial no Congresso para perfilar a seu lado e a favor de causas justas e urgentes, a colossal biografia de um Lula que é protagonista singular da História já parece insuficiente para liderar o País na batalhas excruciantes, diárias e impiedosas. Vencer essas batalhas é mister para o Brasil e os brasileiros se conservarem no lado certo da vida e caminhando em direção à luz e a horizontes mais promissores.
Relutar em fazer trocas ministeriais que estão a quarar sob o céu úmido do verão do cerrado brasiliense, contemporizar excessivamente com a obtusidade cafajeste de muitos dos partidos do “Centrão” abrigados embaixo das marquises de um Governo contra o qual sempre lutaram, é erro político de um Lula que não agiria assim caso tivesse à disposição biografias como a de Genoíno. Meu interlocutor que interrompeu momentaneamente o preparo do jantar sabe disso. Perdoar risonhamente as estratégicas e táticas errôneas e titubeantes da esquerda e do PT, reunidos como base governista no Congresso, é uma bonomia à qual o presidente não pode se permitir. Afinal, “2026 já começou”, como ele mesmo disse aos ministros na reunião de segunda-feira passada. De cá, advirto: começou, sim, e o bate-cabeças da equipe ministerial e a abulia da comunicação palaciana dos dois primeiros anos de “Lula 3” podem ter comprometido perigosamente (talvez fatalmente) o sucesso dessa corrida.
– Liguei só para isso, companheiro. Para dizer que estou vivo, resisti e ainda estou aqui.
Eu e Genoíno não falamos do desempenho do Governo, da candidatura Lula em 2026, dos riscos que o segundo mandato do Donald Trump trazem para o mundo e nem do desempenho sofrível do PT e das esquerdas nesse terceiro mandato. Mas, como sói acontecer aos bons amigos, estava tudo ali no silêncio cúmplice que fizemos no meio de nosso diálogo, enquanto eu conferia o ponto exato da cebola a refogar antes da entrada do alho na panela.
– Genoíno, irei a São Paulo na próxima semana. Estou bem atolado de compromissos. Contudo, forçando uma brecha na agenda, vou até sua casa dar-lhe um abraço pessoalmente. Adorei esse telefonema e tê-lo pessoalmente do outro lado.
– Venha. Há muito o que conversar.
Ao desligar, nessa última frase, percebi que havia uma carga de emoção tamanha que presumi estar ele às lágrimas. Desliguei emocionado – com Genoíno, com o País, conosco, com o que em por aí. É possível que tenha segurado o choro. Fui picar o alho-poró e bater o creme de castanhas.