Por Luís Costa Pinto
– Você vai me dar um copo d’água quando chegar ao poder??
A pergunta, com um vezo entre a intimidação e a chantagem, chegou por whatsapp. Vinha de um deputado bolsonarista, elemento destacado da base do governo e correia de transmissão nas engrenagens chantagistas montadas por Arthur Lira a partir da presidência da Câmara dos Deputados. Transitoriamente relevante para o governo no Parlamento, escrevia-me sentado no degrau mais alto dos píncaros de sua glória particular sem refletir que ela – como todas – vem secundada por um cortejo de horrores. E é passageira.
– Não chegarei ao poder porque não o persigo. Desprezo poder e poderosos, aliás. Nunca lhe neguei água fresca (no mínimo) e boas ideias. Não é ficando ao lado de excrescências como Bolsonaro, Arthur Lira e quetais que você ascenderá. Admiro projetos ambiciosos e trajetórias corretas em busca dos sonhos. Isso que vocês estão fazendo hoje, atropelando Constituição, leis, normas, tradições, decência e moralidade a fim de reeleger uma criatura vil e perversa como Bolsonaro e o cortejo de jagunços que o pajeia é apenas – apenas – a materialização daquilo que eu antevi em 2016 (e falei para você): Democracia não admite atalhos, e impeachment sem crime de responsabilidade é atalho (como foi). Destruída a base, desmantelada a base legal do sistema político, tudo rui. E ruiu. Há o lado de quem produz ruínas e há o lado de quem resiste a esses vendilhões. Eu estou do lado da resistência.
A resposta, que o deputado federal governista foi obrigado a ler, e leu, porque os dois traços em forma de “v” ficaram azuis no meu smartphone, delimitava nossa relação. Também circunscrevia quaisquer intimidades pretéritas a minha indignação por vê-lo – um antigo militante do Partido Comunista, outrora líder estudantil – na condição de acólito e jagunço de toda a perversidade que transforma o Brasil numa ruína impensável se sonhos que, em algum momento, havíamos sonhado juntos.
Menos de três meses nos separam das urnas do 1º turno na nona eleição presidencial desde o fim da ditadura militar. Se Deus quiser, será turno único com o despacho ao mar de lama e ao quinto dos infernos dessa oferenda demoníaca que é Jair Bolsonaro. Ele será incinerado pelo fogo com o qual incendiou o País. Porém, em que pese tal certeza do veredito das urnas, desde janeiro de 1985, quando o Colégio Eleitoral instituído pelos generais-ditadores elegeu a dupla Tancredo Neves e José Sarney para o comando da República, nunca chegamos às vésperas de definição sucessória nacional com tantas e tamanhas dúvidas sobre o comportamento de militares (e de seus comandantes) em torno da soberana decisão popular.
Não há risco de golpe: o golpe já foi dado. Ocorreu em 2016, quando um conluio de parlamentares, jurisconsultos, empresários, opinionistas da mídia tradicional e uma corja de inocentes úteis e culpados insidiosos achou que rasgariam impunemente a Constituição para tirar do cargo uma presidente eleita legitimamente sem que houvesse crime de responsabilidade em nome do qual ela seria deposta. Vivemos os últimos cinco anos e meio sob as consequências duríssimas e os dissabores antidemocráticos enlutados pela morbidez dos ecos do golpe parlamentar/jurídico/classista perpetrado contra Dilma Rousseff.
Ou é tolerável escutar impassíveis um militar da reserva, o ministro da Defesa, dizer por escrito ao Tribunal Superior Eleitoral que “não foi atendido” em demandas unilaterais feitas por eles para “reforçar a segurança” do sistema de apuração eletrônica de votos?
As Forças Armadas não têm prerrogativa alguma que lhes deem a ousadia de desejarem chancelar a Democracia. Quando a normalidade democrática esteve em risco, aqui, foi com o concurso dos militares ou por causa deles. A Constituição de 1988 pôs os militares e seus comandantes como vassalos – vas-sa-los! – do poder político-institucional que emana das urnas e é exercido a partir do convívio harmônico dos Três Poderes republicanos. Ministro da Defesa é empregado de presidente da República. Generais, brigadeiros e almirantes devem obediência ao ministro da Defesa e este integra um governo. Quem tem interlocução com as presidências dos outros poderes é o chefe do Executivo. Se tal chefe é um ser desprezível e repugnante como Bolsonaro as normas de convívio democrático devem ser dribladas para que sejam preservadas – e não para serem demolidas. Paulo Sérgio Nogueira: ponha-se em seu lugar.
No País que se esmerou por construir um plano de contenção da inflação e de revalorização da moeda nacional como o Real, como o Brasil de 1993/1994, recém-saído de um traumático e constitucional impeachment como o de Fernando Collor de Mello, seria possível imaginar a desfaçatez com que os presidentes da Câmara e do Senado desrespeitaram a Constituição e os regimentos das duas Casas Legislativas para servir ao presidente da República em seu desespero pela reeleição?
A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Derrama, ou “PEC Kamikaze”, ou “PEC do Desespero de Bolsonaro” assombra-nos não apenas pelos efeitos catastróficos que produzirá no desarranjo econômico. Mas, também, na devastação anti-constitucional e no desmonte do arcabouço legal que produzirá a favor de um presidente da República desumano e vil. Bolsonaro não economiza vilanias na perseguição do segundo mandato que tem para ele o valor de uma carta de alforria dos crimes já cometidos e um passaporte válido para seguir promovendo o jogo duro iliberal e contra-constitucional destinado a transformar em ruínas o Estado Democrático de Direito.
Vivemos sob os escombros e a caminhar na terra arrasada do Brasil que a minha geração ousou sonhar reconstruir depois do golpe militar de 1964. Fomos contemporâneos do ruinoso legado deixado por quem devia cumprir ordens e limitar-se ao papel que a Constituição de 1946 delimitou para eles. Contudo, açulados pela molecagem mequetrefe dos “senhores do andar de cima” (um bando ignominioso de recalcados), consideraram ter ousadia e inteligência para tocar o País. Derretem-se na própria covardia e terminaram atolados no produto das burrices autóctones.
Eis a atmosfera brasileira desses dias pré-eleitorais: são as brumas do golpe. Os fogos golpistas já foram soltos. Ela adoeceu a todos, permitiu que um parlamentar formado do lado da resistência à ditadura pulasse a cerca crendo terem valor as iniquidades abjetas que povoam suas ambições, e mande uma mensagem com que me mandou esse missivista de whatsapp.
A febre se instalou há uma semana. Os primeiros calafrios foram registrados na madrugada de 1º de julho, por volta das 4h. O gatilho: a leitura dos portais de notícias antes da alvorada daquele dia. Com o voto solitário de José Serra (PSDB-SP), contrário a ela, e sob o beneplácito do jurista de quermesse Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que ocupa e desonra a cadeira de presidente do Senado Federal, havia sido aprovada a proposta de emenda constitucional destinada a promover a derrama de dinheiro público na campanha à reeleição de Jair Bolsonaro, registravam os diversos sites noticiosos pelos quais navego.
Febres são sintoma de que algo não vai bem num sistema geral. Nunca é prudente debelá-la artificialmente, com antitérmicos, antes de determinar-lhes a causa. No caso, a febre, que não cede e só agrava, dá vezo à infecção generalizada que arrisca matar a Democracia brasileira por falência de múltiplos órgãos.