2º turno: Lula e o paradoxo da Geni

Por Luís Costa Pinto

De tudo que é nego torto
Do mangue, do cais, do porto
Ela já foi namorada

O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada

Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato

É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato

E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir

Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim

Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim

A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia

Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: Mudei de idéia

Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir

Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir

Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada, tão singela
Cativara o forasteiro

O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela prisioneiro

Acontece que a donzela
E isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos

E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos

Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão

O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco

Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco

Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado

E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado

Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir

Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni”

             ( Geni e o Zepelim, Chico Buarque, 1979)

            Antes de falarem ou escreverem que “Lula deve fazer acenos ao centro”, ou que “PT precisa firmar compromissos com o mercado financeiro”, alguns analistas de momento da mídia e da Faria Lima deviam ler três vezes o magistral conto contido na letra de Geni.

             O Brasil que emergiu das urnas do dia 2 de outubro de 2022 lembrou-me o mundo pós-apocalíptico de “A Estrada”, romance de Cormac McCarthy que descreve a jornada pela sobrevivência de um pai e seu filho para sobreviverem numa Terra devastada por uma hecatombe nuclear responsável por destruir a civilização. A história contida no livro do norte-americano McCarthy sugere, sem qualquer diálogo entre as obras, que o comandante do Zepelim da música de Chico Buarque não subjugou Geni. Em retaliação, os dois mil orifícios da nave cuspiram as balas dos dois mil canhões e tudo embaixo virou geleia.

            Tomado por sua representação congressual – e a Câmara é a representação média do povo, enquanto o Senado é o espelho da Federação – a Nação brasileira foi abduzida por moralistas de fancaria, por detratores sórdidos da pauta de emergência ambiental e sanitária por que passa o mundo e por cínicos e hipócritas que agem no varejo sob a capa (de bandido) do anti-herói travestido de capitão, Jair Bolsonaro.

            Em 1990, o governador de São Paulo, Orestes Quércia, regozijava-se de ter quebrado o Banespa (Banco do Estado de São Paulo, estatal estadual) para eleger Luiz Antônio Fleury (PMDB) como sucessor. Fleury teve por adversários Mário Covas (PSDB) e Lula (PT). Como “o mercado financeiro” de então – integrado pelos últimos resquícios do baronato industrial paulista – via Cova e Luiz Inácio como demônios comunistas e estatizantes apenas com matizes diferentes, a trágica gestão econômica quercista foi perdoada. Afinal, o objetivo era vencer.

            Jair Bolsonaro, encarapitado no lombo de seu camaleão amestrado Paulo Guedes, o ex-liberal que nos dias de hoje topa tudo por um naco do tapete vermelho do poder brasiliense, quebrou o Brasil desde 2019, repetiu a bancarrota em 2020, dobrou a aposta em 2021 e multiplicou-a em 2022 ao comprometer o resultado fiscal do Tesouro Nacional até 2026. Contudo, vem sendo suportado e perdoado pelos ricos desmiolados e descomprometidos do País – gente da estatura moral e intelectual de um meio-fio como Luciano Hang, Flávio Rocha, Afrânio Barreira, José Khoury, Meyer Nigri, Luiz André Tissot, entre outros – porque lhes abre atalhos nos negócios a fim de fazê-los mais ricos sem quaisquer contrapartidas sociais.

            Que esse mol de aproveitadores dê apoio ao ignorante e despreparado ex-militar expulso do Exército por má conduta é até explicável: a História registra adesões empresariais oportunistas desde os tempos dos saques vikings no norte da Europa até a destruição e ocupação do Iraque e do Afeganistão (passando, claro, pelo endosso de banqueiros suíços e industriais alemães a Adolf Hitler).

Salta inexplicável, contudo, é a vista grossa que o empresariado e o miolo de centro ainda não bolsonarista da sociedade brasileira faz a esses desvios do atual presidente ao mesmo tempo em que seguem exigindo “movimentos pragmáticos” de Lula a fim de explicitar apoio ao candidato do PT. Agem com ele como o prefeito, o bispo e o banqueiro que empurraram a Geni do conto musicado de Chico para os braços pérfidos do comandante do Zepelim invasor.

Depois de ter perdido três eleições presidenciais – 1989, 1994 e 1998 – e ter se conservado temente aos ditames da Constituição, investindo no crescimento orgânico de seu partido, o PT, dentro do Parlamento tendo em vista a conquista natural do Governo em 2002, como explicar além do exemplo a persistência de temores antidemocráticos emanados por Lula? E, depois de governar por oito ano, eleger a sucessora, que foi reeleita e terminou deposta num golpe jurídico/parlamentar/classista aturado de pé por si e por seu partido, como chancelar minimamente a prevalência dessa mentira como ameaça? Indo além: sabendo-se que Luiz Inácio Lula da Silva foi processado, julgado, condenado e preso num processo ilegítimo, conduzido por um juiz incompetente para fazê-lo, mas, que se prestou à farsa depois desfeita pela Suprema Corte, sem deixar de buscar seus direitos à margem da Lei, como acreditar nas mentiras assacadas contra ele a soldo de criptomoedas saídas do inferno para financiar postagens em redes sociais?

Entre 2003 e 2013, nos governos de Lula e no curso do primeiro mandato de Dilma Rousseff, o Brasil era o melhor lugar para se estar no mundo. Aqui, entendíamos e explicávamos o mundo. Daqui, experimentávamos saídas originais para a redução do injusto e desumano fosso social surgido em países com desigualdades como o nosso – como o Bolsa Família – e elas eram reproduzidas em diversos países. Naquele período, “mercado” e indústria pareciam em lua-de-mel com o líder a quem nunca deixaram de ver como Geni. Encerrado o flerte, sentindo-se seguros, deram-se ao luxo covarde de adotarem ao menos o silêncio ante as violências jurídicas cometidas contra Lula e voltaram ao ciclo de imprecações – joga pedra, cospe, …maldito…! Atordoados porque se veem impotentes ante novo sobrevoo do Zepelim com seu comandante boçal, lá estão novamente genuflexos o prefeito, o padre e o banqueiro com seu milhão.

A História se repete. Só não é possível responder como o ciclo se fecha, e se há desfecho para ele. Lula, uma rocha inexpugnável que parece segurar a base de toda a Nação ante o tsunami de extrema-direita, de boçalidades, de ignomínias e de violências porque todas as demais ruíram, não é Geni e como Geni não pode e não deve ser tratado. Não há mais guinadas ou compromissos pragmáticos a serem exigidos. Há, isto sim, um ser demoníaco a ser derrotado porque ele sintetiza todo o mal, toda a vilania e toda a perversidade do lado sombrio do Brasil e de alguns brasileiros. É disso que se trata, e é por isso que, agora, tem de ser assim: Lula.

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LUÍS COSTA PINTO

Luís Costa Pinto, 55. Jornalista profissional desde 1990. Começou como estagiário no Jornal do Commercio, do Recife. Foi repórter-especial, editor, editor-executivo e chefe de sucursal (Recife e Brasília) de publicações como Veja, Época, Folha de S Paulo, O Globo e Correio Braziliense. Saiu das redações em agosto de 2002 para se dedicar a atividades de consultoria e análise política. Recebeu os prêmios Líbero Badaró e Esso de Jornalismo em 1992. Prêmio Jabuti de livro-reportagem em 1993. Diversos prêmios "Abril" de reportagem. É autor dos livros "Os Fantasmas da Casa da Dinda", "As Duas Mortes de PC Farias" e "Trapaça - Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro" que já tem três volumes lançados. Haverá um 4º e último volume). Também são de sua autoria "O Vendedor de Futuros", um perfil biográfico do empresário Nilton Molina e "O Procurador", livro-reportagem que mergulha nos meandros do Ministério Público e nas ações da PGR durante o período de Jair Bolsonaro (2019-2022) na Presidência da República.

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