De saída, Rodrigo Maia está destinado a confrontar sua sombra

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, construiu em pouco tempo uma das mais promissoras carreiras da história parlamentar do Brasil. Contrariando prognósticos de quem se dizia especialista em eleições congressuais, em 14 de julho de 2016 se elegeu presidente da Câmara dos Deputados para exercer um mandato-tampão de sete meses em razão da prisão do antecessor Eduardo Cunha. Cunha havia sido o dínamo que deu energia, oxigênio e musculatura aos movimentos inicialmente desconexos de setores recalcados da sociedade brasileira que começaram a reivindicar o impeachment da presidente Dilma Rousseff tão logo foram fechadas as urnas de 2014. Para se safar da escalada de investigações contra si e, ao mesmo, converter-se em alternativa de poder real, Cunha inventou o processo de impedimento presidencial sem a existência de um crime de responsabilidade.

Executada a missão do golpe parlamentar imposta pelo andar de cima da sociedade, deposta Dilma, Cunha caiu em desgraça e foi preso semanas depois. O establishment político e empresarial entrou em parafuso —quem articularia a aprovação da agenda liberal-conservadora urdidas nos convescotes do mercado financeiro e nos cafés-com-algo-mais das torres de vidro da Faria Lima? “Maia” era a resposta e parecia mesmo uma solução.

Dono de um diferencial competitivo raro entre políticos de primeira linha, o deputado do Democratas sempre soube ouvir os interlocutores. Tenha-se claro que ouvir não é sinônimo de escutar. Em política, quando um cacique o ouve é porque ele concede a você a deferência de prestar atenção no que é falado em meio a uma conversa. Maia sempre soube compreender o que lhe era dito e, em rotina ordinária, jamais deixou de dar respostas diretas: sim ou não, segue ou não segue tal ou qual articulação. Parece óbvio, mas agir assim é comportamento escasso em Brasília. Na capital da República, dissimulações e tergiversações são regra e não conduzem a soluções. Problemas sem soluções redundam, em geral, em taxímetros que permanecem ligados e a registrar o custo do acesso a alguém que abra portas no coração do poder.

Cunha liderava uma bancada outrora estimada em 300 almas penadas prontas a depenar quem para elas encomendasse reza. Tinha para tal a destreza dos velhos donos de frota de táxi. Os taxímetros estavam sempre ligados — e na bandeira 2! Muitas vezes, havia a cobrança de taxa extra como, por exemplo, aquelas que muitos aceitam pagar aos frotistas que carregam malas. Sentado na cadeira do antecessor, Rodrigo Maia desligou os taxímetros, extinguiu os pontos de cobrança de frete e de extras e ordenou o extermínio da plantação de jabutis. Na Câmara de Eduardo Cunha os quelônios davam safra em árvores e se reproduziam nas entrelinhas dos textos legais semeados, em geral, a partir de escritórios de advocacia ou de centrais de lobby regiamente remunerados para a faina.

Avesso ao adjetivo “liberal”, uma implicância boba, posto que ele é uma das maiores lideranças da direita liberal do País, depois de tocar fogo no estoque de taxímetros das comissões da Câmara dos Deputados, Maia ganhou fôlego para alçar voo rumo a outro patamar de altitude. Convenceu Michel Temer, o artífice da deposição de Dilma e que herdou a cadeira presidencial, a estabelecer um teto para os gastos públicos e a enviar para o Congresso propostas de reformas das leis trabalhistas, tributárias e previdenciárias.

Convertido em segundo na linha sucessória de Temer, o presidente da Câmara usou os dois olhos, os dois ouvidos e a inteligência rápida para virar o grande polo de soluções de Brasília. Enquanto corria com a tramitação das reformas, cuidou de se aproximar com habilidade de ministros dos tribunais superiores e conseguiu — por meio de vistas grossas — a permissão para pleitear uma reeleição em fevereiro de 2017 que poderia ter sido considerada ilegal. Mas, à guisa de nomes melhores no Parlamento e porque se tentava reunificar uma nação fraturada pelo impeachment sem crime de responsabilidade, Maia foi reeleito e turbinou a aprovação de reformas constitucionais de vezo liberal.

A primeira delas a passar foi a sindical, e desmontou o funcionamento dos sindicatos no Brasil. A segunda, a trabalhista. Alterando mais de uma centena de artigos e dispositivos constitucionais e da Consolidação das Leis do Trabalho, a reforma trabalhista teve o condão de desorganizar a rede de proteção do Estado aos trabalhadores formais brasileiros. Foi um efeito colateral perverso agravado pela peculiaridade de o “capitalismo” brasileiro ser tocado por executivos e investidores com imensa aversão a risco: põe todo o custo social do capitalismo no Estado e só investem quando têm certeza de que receberão benesses e beneplácitos na forma de renúncias fiscais, prazos paternais para devolver empréstimos a bancos públicos e certeza de que inadimplências tributárias serão perdoadas. Interlocutores advertiram Maia de que o tiro sairia pela culatra, com ampliação do desemprego e redução da Rede de Proteção Social — além de redução na arrecadação da Previdência Social. O presidente da Câmara ouviu-os, porém não os escutou daquela vez.

Em maio de 2017, Rodrigo Maia precisou vestir às pressas o uniforme resistente a fogo dos bombeiros e correr para salvar Michel Temer do incêndio gerado a partir de uma célula de autocombustão no subsolo do Palácio do Jaburu. Num diálogo tão sórdido quanto grotesco, enquanto fazia as vezes de “Presidente da República”, cargo que tomara de Dilma Rousseff, Temer pedia ajuda ao empresário Joesley Batista e ouvia dele que estava na corrente no mínimo pragmática criada para dar tranquilidade a Eduardo Cunha. O ex-presidente da Câmara, prócer do impeachment sem crime de responsabilidade de 2016, sempre foi amigo e correligionário de Temer e estava vivendo as agonias do xilindró graças a acusações de corrupção, peculato e advocacia administrativa.

Divulgados os diálogos impróprios do subsolo do Jaburu, Temer cogitou renunciar ao cargo ao qual ascendera depois de uma bem-sucedida conspiração parlamentar, jurídica e classista. Estava decidido a fazê-lo quando recebeu um recado de Maia: a conversa com Joesley Batista fora um erro injustificável, mas a renúncia naquele momento jogaria o País num limbo constitucional indigesto e desconhecido.

Assustado com o protagonismo que passaria a ter — caso Temer renunciasse mesmo, seria nomeado Presidente da República e teria de convocar uma eleição no prazo de 60 dias —, Maia deu um salto gigantesco de maturidade política ao mesmo tempo em que cometeu o que alguns consideram seu primeiro grande erro no acerto de contas com a História. Temer refugou, ficou no cargo, decidiu enfrentar a oposição e Rodrigo Janot, o atrapalhado (para dizer o mínimo) Procurador Geral da República. Janot podia ser considerado atrapalhado, mas tinha agenda. E, pela agenda dele, passava a desmoralização da política e dos políticos, tarefa à qual se dedicou com denodo junto com a “Força Tarefa” montada em Curitiba pelo Ministério Público e chefiada por trás dos panos da farsa da Lava Jato pelo então juiz Sérgio Moro.

Na esteira do “fico” de Temer, Rodrigo Maia virou uma espécie de líder do Governo e primeiro-ministro ao mesmo tempo em que chefiava a Câmara dos Deputados. Ministros de Estado, integrantes dos tribunais superiores, plutocratas da Faria Lima e executivos do mercado financeiro passaram a enxergar nele a encarnação do poder, de todo o poder que se é capaz de reunir em Brasília. Não era assim, o próprio Rodrigo Maia tinha a consciência de que as coisas não se davam assim. Entretanto, o figurino era-lhe confortável. Na capital do Brasil, as aparências contam mais que as essências. E ter um infinito poder aparente resolve muitos problemas. Quem conhece os meandros brasilienses, porém, sabe que são glórias transitórias. Tudo passa.

Por duas vezes mais, Maia pôde flertar com a possibilidade de virar presidente-tampão da República e até disputar no cargo uma eventual reeleição em 2018. Tais oportunidades surgiram quando o plenário da Câmara rejeitou duas vezes dar prosseguimento à investigação de denúncias feitas pela PGR contra Temer. Em agosto de 2017 a primeira denúncia foi arquivada por 263 votos contra ela e 227 a favor. Outubro daquele mesmo ano, por 251 votos contra e 233 a favor, num placar mais apertado que refletia o desgaste do governo em virtude do colapso gerencial de Michel Temer, os deputados voltaram a recusar a ação do Ministério Público contra o homem que exercia a Presidência. Se Rodrigo Maia tivesse cedido os dedos de apenas uma das mãos a favor dos mapas de caminhos conspiratórios que lhe foram oferecidos à época daquelas votações, Temer teria caído e a história de 2018 seria bem outra. O presidente da Câmara conservou-se leal ao conjunto ora desconexo de políticos e de interesses que levara o grupo ao poder embora fosse já um crítico contumaz dos erros do Palácio do Planalto e tivesse assentada a certeza de que o diálogo de Michel Temer com Joesley Batista no subsolo do Jaburu inviabilizara a agenda econômica que haviam planejado. Tanto foi assim que a reforma da Previdência precisou esperar a eleição de 2018 para ser debatida a sério e aprovada no Congresso. A reforma tributária, contudo, segue parada e a proposta urdida por Maia com economistas dos mais variados matizes e por amplo espectro partidário, não é prioridade do atual Governo.

Empossado Jair Bolsonaro, um político pérfido, de discurso perverso, e que sempre fez oposição pela extrema-direita a Rodrigo Maia e ao pai dele, César Maia, ex-prefeito do Rio, o presidente da Câmara disputou nova reeleição para presidir a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2019, foi reeleito com folga. Os papéis distribuídos pelo destino, entretanto, eram já diversos. Ao contrário de Temer e apesar de entabular um discurso repulsivo contra a política, os políticos e as instituições, Bolsonaro tinha consigo a legitimidade do voto popular — recebeu mais de 57 milhões de votos no segundo turno de 2018 — e um vice-presidente também eleito em sua chapa. Maia não poderia mais protagonizar a personagem de líder do governo e primeiro-ministro enquanto vestia o terno (e as camisas polo) de presidente da Câmara.

Ao se contrapor à abjeta agenda reacionária “de costumes” de Bolsonaro, e também porque conferia organicidade e inteligência à agenda econômica do governo eleito, Rodrigo Maia paulatinamente foi atraindo a intolerância e a ojeriza do presidente da República e do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ignorante dos hábitos e dos ritos da política, Guedes dinamitou as pontes que poderiam ligá-lo a Maia e deixou que se tornasse caudaloso o rio de ódio entre eles. Bolsonaro, por sua vez, agindo por instintos animais, portou-se como chefe da matilha de lobos famintos integrada por seus filhos — 01, 02 e 03 — e nunca perdeu oportunidade de tentar humilhar Maia.

Bolsonaro, uma vez mais, foi desmentido pelos fatos: foi na Câmara dos Deputados, a partir de debates e projetos legislativos liderados por Rodrigo Maia, que o Estado brasileiro conseguiu exibir uma estratégia mínima de combate efetivo à propagação letal do coronavírus covid-19 durante a pandemia. O auxílio emergencial de 600 reais, entregue diretamente a 38 milhões de brasileiros alocados nos estratos inferiores da pirâmide social, salvou vidas, a economia popular e ao menos retardou a discussão à vera do impeachment de Jair Bolsonaro porque lhe deu sobrevida de popularidade. Sob protestos da equipe econômica de Guedes e por insistência da Câmara, o auxílio foi aprovado pelo Congresso. Toda a estrutura de comunicação e trocas logísticas entre os estados da federação, cujos governadores se revelaram muito mais maduros e preparados que o presidente, foi estimulada e, muitas vezes, formatada pela Câmara.

O presidente da Câmara consolidou a imagem de seriedade e de desprendimento perante parte da sociedade — a parte que sempre o incensou e interessou. Até se ganha eleição sem eles, ou contra eles, mas não se governa o Brasil prescindindo deles. Collor e Dilma sentiram na pele a desconexão que tinham com esse “andar de cima”, produzida no curso de seus mandatos. Fernando Henrique e Lula, eleitos e reeleitos, que governaram oito anos, regozijam-se com méritos de nunca terem cruzado o rubicão ou dinamitado as pontes que existem para tal travessia. E Rodrigo Maia é um exímio construtor dessas pontes.

Mas, os sinais de hostilidade a Maia dados por Bolsonaro foram captados no Congresso e não deixaram de tirar força política do presidente da Câmara. Vem dessa trajetória tortuosa o patente enfraquecimento institucional do político que melhor encarnou a possibilidade de a sua geração chegar efetivamente ao poder à frente dos próprios sonhos e bandeiras, esgrimindo projetos singulares e modernos para o País.

Convencido de que nenhum dos 61 pedidos de impeachment presidencial que foram endereçados à Presidência da Câmara seria aprovado no plenário da Casa, Maia guardou todos na gaveta do reservado de sua sala. Quem o suceder, os herdará; posto que ele tampouco irá arquivá-los. Ante os arreganhos bolsonaristas contra a Constituição, contra o Parlamento e contra si, Maia não os fez andar por um cálculo tão frio quanto controverso: não passariam porque o presidente conta ainda apoio consistente no Congresso e, uma vez rejeitado, o impeachment fortaleceria o presidente da República.

Agir friamente à luz da tragédia sanitária e humanitária do País e ante o cotejamento das ações que podiam ter sido levadas a cabo para arrefecer e frear o contágio e a mortandade provocados pela covid-19, e não o foram, por um Jair Bolsonaro colérico e obscurantista, resultou no recrudescimento das críticas por equívoco dos cálculos políticos. A lealdade devida a Temer não estava posta em cena para justificar o bloqueio ao andamento de ao menos um dos pedidos. Compilação efetuada pelo jornal Folha de S. Paulo levantou a existência de ao menos 23 crimes de responsabilidade passíveis de impeachment em atos e omissões de Bolsonaro, no exercício do mandato, e que foram decisivos para recrudescer a dispersão do vírus e as mortes em decorrência do coronavírus.

Cautela é ferramenta essencial na construção da trajetória de qualquer estadista. Ao driblar uma derrota patente que poderia se converter em fortalecimento de seu adversário político, Maia talvez tenha errado no uso equilibrado da ousadia que, por sua vez, também é atributo necessário a quem está na estrada e dando o norte — como ele. Mas, se o impeachment não teve início por meio de sua caneta, a construção da maioria necessária a aprová-lo passará, necessariamente, pelo espectro de canais de diálogo de largo diapasão que abriu nos diversos setores da sociedade e em todos os partidos políticos.

Aos 50 anos, tendo sido presidente da Câmara dos Deputados por quase cinco anos, Rodrigo Maia teve todas as chances de entregar o cargo a um aliado e pedir que o sucessor cuidasse de seu legado. Sairia do posto muito maior do que entrou. Quando evitou conspirar contra Temer e fazer com que as denúncias da PGR contra o homem que derrubou Dilma Rousseff fossem consideradas procedentes pelo plenário da Casa, recusando as tentações de se tornar presidente da República pela via indireta, usou a favor da própria biografia a lei da lealdade.

A lei da lealdade é uma regra intangível e consuetudinária da arte de fazer política que torna maiores aqueles que são leais aos aliados e, sobretudo, aos adversários. Havia clareza e lógica nos argumentos das denúncias da Procuradoria da República que podiam levar à queda de Temer e à sua ascensão à Presidência. Rodrigo Maia conservou-se fiel ao grupo que derrubara Dilma, obra consumada em sociedade, e trabalhou para manter Temer na cadeira palaciana. A lealdade pregressa, entretanto, não foi respondida à altura pelos pares. Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Temer preso quando 51 milhões de reais em espécie foram flagrados num apartamento dele em Salvador, dizia que era preciso sempre “estar sendo” alguma coisa em Brasília porque quando alguém bate à porta a pergunta que se faz é “quem é?” e não “quem foi?”.

A partir do dia 2 de fevereiro Rodrigo Maia terá de se confrontar com a própria sombra e perguntar: quem e o quê fui? Aonde errei? A vitória de Baleia Rossi, candidato dele, parece improvável neste momento nas calculadoras de votos de quem sabe contá-los nos processos legislativos. Arthur Lira, o nome escalado pelo Palácio do Planalto e pela família Bolsonaro para herdar a cadeira da presidência da Câmara, está ávido para religar os taxímetros da Praça Eduardo Cunha, localizada na esquina da Esplanada dos Ministérios com a cúpula do Plenário Ulysses Guimarães. Ali, há taxistas loucos por retomar o delivery legislativo cujo guichê foi fechado por Maia.

Publicado em https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-31/de-saida-rodrigo-maia-esta-destinado-a-confrontar-sua-sombra.html

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LUÍS COSTA PINTO

Luís Costa Pinto, 55. Jornalista profissional desde 1990. Começou como estagiário no Jornal do Commercio, do Recife. Foi repórter-especial, editor, editor-executivo e chefe de sucursal (Recife e Brasília) de publicações como Veja, Época, Folha de S Paulo, O Globo e Correio Braziliense. Saiu das redações em agosto de 2002 para se dedicar a atividades de consultoria e análise política. Recebeu os prêmios Líbero Badaró e Esso de Jornalismo em 1992. Prêmio Jabuti de livro-reportagem em 1993. Diversos prêmios "Abril" de reportagem. É autor dos livros "Os Fantasmas da Casa da Dinda", "As Duas Mortes de PC Farias" e "Trapaça - Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro" que já tem três volumes lançados. Haverá um 4º e último volume). Também são de sua autoria "O Vendedor de Futuros", um perfil biográfico do empresário Nilton Molina e "O Procurador", livro-reportagem que mergulha nos meandros do Ministério Público e nas ações da PGR durante o período de Jair Bolsonaro (2019-2022) na Presidência da República.

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