Emendas impositivas criadas por Eduardo Cunha foram a centelha do golpe de 2016. O orçamento secreto permitiu a Bolsonaro terceirizar a administração federal em escambo para se proteger do impeachment. Pix orçamentário transfere ilegitimamente ao Congresso centro de gravidade da política do Palácio do Planalto e asfixia a sociedade civil
Por Luís Costa Pinto
O modelo de democracia representativa que no curso do Século XX estabilizou, pacificou e deu governabilidade ao mundo ocidental está em crise inequívoca e avançada. Sofre de esclerose múltipla. No Brasil, o fenômeno é responsável por acentuar os efeitos da calcificação ideológica do país e isso nos traz retrocessos absurdos como ter de levar a sério a reacionária pauta de costumes da extrema-direita local. Desde 2021, com o encastelamento de Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados, o convívio harmônico entre os poderes da República passou a desandar dada a exacerbação liberticida de proatividade do parlamentar alagoano. Todo o ambiente republicano vê-se agora comprometido em razão das más práticas políticas que advêm de um Parlamento pervertido pelo comércio de emendas, pela troca de verbas federais por obras sem fiscalização e pela destinação de recursos públicos para licitações municipais facilmente manipuladas por esquemas locais. A engrenagem, que parece mambembe mas é sofisticada no seu mister de burlar os órgãos fiscalizadores – sobretudo os tribunais de contas e o Ministério Público – reforça e perpetua as mazelas operacionais da máquina política brasileira e nos converte num Estado disfuncional e anômico.
O que está descrito no parágrafo acima não é novidade para ninguém em Brasília. Com frieza e perversidade, o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, erigiu essa Torre de Babel para-legal bizarra a fim de depor o governo Dilma Rousseff. Como os recalques indisfarçáveis dos meios empresariais, financeiros, industriais e militares do País para com o Partido dos Trabalhadores em geral e para com a presidente Dilma em específico se encontravam em ponto de ebulição, as instituições republicanas e as entidades da sociedade civil organizada silenciaram ante os arreganhos de Cunha e de seus cúmplices no avanço para a tomada do poder. Os artífices do golpe mantiveram Michel Temer na cadeira usurpada da presidência da República como um títere de suas vontades e seguiram manipulando a cena. Esse foi o roteiro trágico que pôs Jair Bolsonaro no comando do Poder Executivo a cabo de uma processo eleitoral viciado, o de 2018, quando o Poder Judiciário (STF e TSE, sobretudo. Mas, operadores do Direito distribuídos em outras instâncias judiciais e um Ministério Público Federal atrofiado, anabolizado em suas funções) foi sócio do desastre nacional. Foram coautores do que parecia uma Ópera-bufa e, na verdade, era uma Tragédia clássica. Instalado no Palácio do Planalto, função para a qual nunca teve aptidão ou preparo, depois de arruinar a estrutura administrativa e pilhar o Tesouro Nacional em ações micro e macros, Bolsonaro negociou sua sobrevida no cargo até o fim do mandato, em 31 de dezembro de 2022, com o comando do Congresso. Coronel do Parlamento, onde exerce poder imperial abusando de um arsenal obscuro, Arthur Lira apoderou-se do controle orçamentário e é com ele deturpa, dinamita e assalta os pilares das instituições republicanas: com o orçamento secreto, com as emendas impositivas e com o pix orçamentário.
Graças a Deus, ao povo do Maranhão que o elegeu governador duas vezes e o fez senador em 2022, e ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o indicou para o Supremo Tribunal Federal, o ministro Flávio Dino dispõe de uma oportunidade singular para começar a tirar o Brasil do descaminho do Orçamento da União. Conta, para isso, com a convicção do lado ainda saudável e republicano do Ministério Público Federal. Desde 2022, quando se tornaram mais agudas as distorções da operação de poder que tinham por chave os porões fedorentos e corrompidos do orçamento secreto, das emendas de bancada, das emendas pix, responsáveis por estabelecer uma assimetria inusual na disputa política, procuradores e subprocuradores da República perscrutam, escaneiam e denunciam os desvios acionando o STF para devolver o Brasil ao trilho correto da tripartição de poderes. O julgamento do Orçamento secreto e de seus desvios, sob a condução de Dino, pode ser o início de uma revisão da rota do precipício inexorável que havíamos tomado. Corrigir a operação orçamentária será corrigir o funcionamento da democracia representativa: a máquina pública está disfuncional porque atribuições do Executivo foram roubadas pelo Legislativo. Cabe ao Judiciário arbitrar o impasse e devolver aos parlamentares suas missões históricas e naturais de fiscalizar a execução do Orçamento depois de definir e votar o tamanho das dotações a partir das prioridades definidas pelo Governo – que foi legitimamente eleito pelo voto majoritário em nosso já maduro Estado Democrático. O orçamento secreto é a saúva que está a matar a Nação. Elimine-se, pois, o sistema corrompido do formigueiro chefiado por Lira.