Tendência é os norte-americanos reconhecerem rapidamente as virtudes do mandato do atual presidente. Donald Trump cometerá erros e aguçará divisões em discursos de campanha. Nos próximos 100 dias a luta política dos EUA impactará toda a América Latina
A confirmação da troca de Joe Biden por Kamala Harris na proa da chapa do Partido Democrata que disputará a eleição presidencial dos Estados Unidos em novembro próximo contra o ex-presidente Donald Trump (Partido Republicano) representará um salto qualitativo institucional largo, imenso, das instituições norte-americanas. Os Democratas terão de confirmar na Convenção que começa em 19 de agosto a designação da atual vice de Biden, ex-procuradora de Justiça de San Francisco e da Califórnia, filha de imigrantes – pai jamaicano e mãe indiana. Porém, desde que o presidente dos EUA anunciou a desistência de se manter na disputa, a vice-presidente coleciona apoios partidários, doações milionárias para a dura campanha de 100 dias que terá pela frente e gestos nada desprezíveis de catalisação e restauração do tecido democrático de uma Nação que ainda parece fraturada pelos quatro anos trágicos de Trump como presidente da República (2017-2020).
A maneira como Joe Biden coreografou e protagonizou sua própria saída de cena o engrandece perante a História. Líder de um governo de ótimos resultados na economia, estando à frente de ousado programa de resgate de empregos num país que chegou a flertar com a bancarrota sob os coléricos e irresponsáveis anos de “trumpismo”, o homem que despacha na Casa Branca aos 81 anos é um sênior da política. Restabeleceu o diálogo com o Congresso e com os adversários republicanos no curso de seu mandato de transição. Tendo colecionado dramas pessoais e profundos reveses emocionais na longa trajetória de vida, Biden não inspirava segurança à maioria dos americanos (e em boa parte do mundo) de que chegaria lúcido e firme a janeiro de 2029, quando será encerrado o mandato presidencial ora em disputa. Antítese da figura caudilhesca de proto-ditador fascista encarnada por Trump, o presidente dos EUA evitou um “dedazo” que fosse entendido como preferência por Kamala Harris ao mesmo tempo em que rechaçou a intromissão de dois ex-presidentes ainda muito atuantes na cena americana (graças a Deus), Bill Clinton e Barack Obama, no curso do processo de abdicação da candidatura: é o Partido Democrata que está mandatado para resolver esta parada, e dentro dele e das regras partidárias que a vice-presidente atua para se legitimar como nome destinado a derrotar Donald Trump sob a plena vigência das regras constitucionais e eleitorais da mais longeva democracia do planeta.
Ao pôr o Partido Democrata e suas engrenagens institucionais no centro do palco onde se desenvolve o teatro eleitoral americano, Joe Biden deu imenso impulso de apoio à Democracia representativa. Não é pouco. Em todo o mundo, o sistema democrático em que o poder popular é exercido por representação aos eleitos para a constituição dos poderes de Estado está em crise. Mesmo nos EUA, onde os muros de contenção dos aventureiros como Trump deixaram de funcionar no 6 de janeiro de 2021 (Golpe do Capitólio) e estão ausentes na cobrança por celeridade na responsabilização de Trump pelos ataques ao Congresso e às ameaças de impedir a posse de quem o havia derrotado nas urnas de 2020. Também falham por deixá-lo ser indicado para nova disputa presidencial por dentro de um vandalizado e provecto Partido Republicano, agora.
A consistente coleta de provas contra bolsonaristas que tentaram copiar a avacalhação do Capitólio no Brasil, em 8 de janeiro de 2023, e a determinação da cadeia de comando daquele golpe dado e derrotado no ano passado, consolidou a percepção de maturidade de nossas instituições. Porém, a demora no indiciamento de Jair Bolsonaro e de ex-ministros e de militares golpistas que integraram o governo dele, refreiam o ânimo por punição, fazem-nos desconfiar da costura de um acordão “com o Supremo, com tudo” e açulam as críticas à lentidão do Judiciário. Os partidos políticos brasileiros estariam fazendo muito pela Democracia se estivessem na linha de frente da vigilância contra reveses e “plot twists” nesse processo já tão traumático. O Partido Democrata americano e Biden acenderam um farol para apontar caminho possível aos que velam pela resiliência das instituições democráticas.
Sacramentada candidata e cabeça de chapa do Partido Democrata para enfrentar a chapa Republicana formada por Donald Trump e seu candidato a vice, J. D. Vance, a ex-procuradora, de ascendência latina e asiática, Kamala Harris, certamente mudará não apenas o curso da história na eleição dos Estados Unidos. No decorrer da campanha, o ex-presidente Trump tenderá a acentuar o caráter misógino, xenófobo e fascista de seu discurso político (que se converteu em prática abúlica no exercício do poder, contido pela burocracia de Estado dos EUA). O recrudescimento das ideias toscas de Trump irá impactar toda a América Latina – sobretudo o México, que se prepara para a posse da 1ª mulher eleita presidente, da Argentina, onde um ridículo e patético Javier Milei vê crescer contra si a sombra de uma vice-presidente bem articulada com militares, e no Brasil, onde a extrema-direita bolsonarista tenderá a se isolar e errar na aposta que faz em copiar sem subterfúgios e sem reflexões a calcificação da sociedade americana crendo se beneficiar dela: decairá por causa dela.