#tbt de um mundo que esqueci, apesar de lembrar de tudo

Por Luís Costa Pinto

Fotografado com o celular pelo meu tio, Antônio Carlos, que fará 80 anos dentro em pouco, o registro me chegou pelo grupo de whatsapp de nossa família ampliada, denominado “Orobó”. O nome de batismo do grupo é uma homenagem à cidade do agreste pernambucano, berço do núcleo familiar “Aguiar”, de meu avô materno.

         “João Borba Maranhão será sepultado hoje”, informava o título composto em linotipo e impresso a quente naquele papel já amarelado pelo tempo, com todas as serifas possíveis do Diário de Pernambuco de 14 de junho de 1972. Há 50 anos, portanto, o meu bisavô Joca Maranhão, seria enterrado no município de Aliança, sede de seu engenho Pirauá, no dia seguinte à morte.

         Vovô Joca morreu aos 92 anos, placidamente e em paz, certamente ao contrário da vida que levou. Quando se foi, tinha menos de quatro anos de idade, mas, lembro-me bastante bem dele em cinco ou seis lampejos nítidos de memória que às vezes me ocorrem em flashes.

         “Considerado um dos mais antigos senhores-de-engenho do Nordeste, o sr. João Borba Maranhão deixa 38 netos e 39 bisnetos”, relata o Diário. “Seus descendentes diretos são quase cem”, faz questão de contabilizar o jornal.

– Por que essa conta? – pergunta uma prima no grupo familiar.

– Certamente tio Gomes (um dos nossos tios-avós), que sabia de tudo, já fazia ali um hedge pessoal antevendo o possível surgimento de aspirantes a herdeiros que não se conhecia. Preparava-se para a barafunda da herança – respondi.

“São seus filhos o jornalista Manoel Gomes Maranhão, diretor de ‘O Cruzeiro’ (era o ‘tio Gomes’ ao qual me referi na conversa com a minha prima. ‘O Cruzeiro’ era a revista dos Diários Associados, grupo empresarial ao qual pertencia o Diário de Pernambuco), srs. José Gomes Maranhão, agricultor em Aliança; Luís Gomes Maranhão, prefeito de Vicência; senhoras Cecília Gomes Maranhão de Aguiar, esposa do professor Mariano de Aguiar (meus avós maternos); Alice Gomes Maranhão, esposa do comerciante Edgar de Sousa Gomes; Maria da Penha Maranhão Magalhães, esposa do ex-prefeito (do Recife) Geraldo Magalhães Melo; Lia Mariz de Albuquerque Maranhão, esposa do agricultor Luís Mariz de Albuquerque, e srta. Teresa Maranhão”, prossegue o texto do jornal.

Duas gerações de mulheres levantaram a mão virtual nos grupos de whatsapp, tanto do “Orobó” quanto o da “família nuclear” – eu, minha companheira Patrícia, os meus e os nossos filhos – para o qual eu ampliara aquela lembrança que começava a mexer comigo.

– Os homens eram jornalista, agricultor, prefeito e por aí vai… – registrou uma prima. – As mulheres eram esposas de “fulano de tal”.

– O “melhor” desse texto é que os filhos homens não têm esposas… Já as filhas mulheres trazem, além do sobrenome do marido, o nome a profissão deles – reverberou a mulher de meu primo.

– O “melhor” é que na parte de falar das filhas tem que dizer com quem são casadas – assinalou uma de minhas filhas.

Fosse uma assembleia do Movimento Estudantil, já as via dispersas, em formação triangular no meio da plateia, a pontuar questões centrais no mais legítimo assembleísmo. Concordei com a ala feminina.

“O sr. João Borba Maranhão, conhecido em sua terra como coronel Joca, do engenho Pirauá, de Aliança, foi sempre considerado um autêntico remanescente da aristocracia rural em todo o Nordeste, onde viveu integrado como senhor-de-engenho, durante 70 anos”, lembrava o DP, esboçando uma biografia, no terceiro parágrafo do obituário de meu bisavô. E ia além: “Legítimo representante das melhores tradições do fidalgos da cana-de-açúcar, o desaparecimento do sr. João Borba Maranhão consternou os círculos sociais, econômicos e políticos do Estado”.

– “Legítimo representante das melhores tradições dos fidalgos da cana-de-açúcar”… também é melhor nem imaginar o que significa isso – apontou logo um primo, médico e cientista, radicado em Chicago (EUA) há quase trinta anos. Perspicaz, afiado, uma cabeça sempre pronta para apontar as idiossincrasias da vida com o lobo esquerdo do cérebro e pouco mais novo do que eu, tenho sempre uma identidade quase instantânea com as observações desse primo. Não foi diferente desta vez.

“O sr. João Borba Maranhão dedicou-se desde muito jovem à agricultura canavieira nos engenhos Pirauá, de Aliança, e Concórdia, de Nazaré, de sua propriedade. Foi, por duas vezes, prefeito de Aliança, sendo um dos administradores mais eficientes daquele município. Era também seu filho o industrial Ernesto Gomes Maranhão, usineiro em Alagoas, falecido há poucos anos”, encerrava o Diário.

Como tinha três anos e dez meses quando o texto foi publicado, obviamente não lembrava dele. Porém, ousei perguntar à minha mãe e aos meus tios, no grupo de whatsapp, se era exagero ou perfídia de minha memória a lembrança do casarão da Rua Gerando de Andrade, nº 111, no bairro do Espinheiro onde o coronel Joca Maranhão viveu seus últimos anos. E onde morreu placidamente, depois do almoço, numa tarde quente e úmida, sem mais levantar da sesta.

Lembrei do alpendre largo, do piso de ladrilhos hidráulicos desenhado com formas geométricas, e de um gramado que me parece imenso na memória. Havia rosas nas laterais. Lembrei dos leões de louça, em tamanho real, que adornavam os flancos do terraço, e das pinhas portuguesas, também de louça, peças de fina azulejaria. Lembrei da cadeira de balanço em que ele repousava com o chapéu panamá escondendo os olhos e a testa imensa dos calvos. Lembrei das compoteiras de cristal da sala, sempre cheias com doces de frutas – goiaba, coco verde, mamão – e uma delas destinada à ambrosia perfumada com cravos-da-índia.

Mas, lembrei também do personagem que era meu bisavô, um típico coronel agrestino que vira a vida e a História do Brasil passarem por seus olhos em mais da metade do Século XX. Confirmei com os que já eram adultos ao tempo de sua morte: ele trajava sempre terno de linho branco, bengala com punho trabalhado, circulava num aero-willys rabo-de-peixe preto e carregava sempre um revólver prateado e um punhal. Afinal, era de fato um “legítimo representante das melhores tradições dos fidalgos da cana-de-açúcar”, como escreveu o Diário de Pernambuco. Lembrei do meu aniversário de três anos, quando recebi dele um batmóvel inesquecível, reprodução do batmóvel da série Batman, dos anos 1960, protagonizada por Adam West (o homem-morcego) e Burt Ward (o Robin). Lembrei que em minhas lembranças de criança aquele batmóvel era, na verdade, o aero-willys preto de meu bisavô.

O envio displicente de uma reminiscência jornalístico-familiar de 50 anos atrás disparou em mim vários gatilhos sentimentais, de personalidade, de identidade. Na pré-adolescência, identifiquei-me profundamente com o ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego – Menino de Engenho, Doidinho, Banguê, Usina e Fogo Morto – para, em seguida, mergulhado na militância estudantil precoce de um movimento secundarista vibrantemente fermentado pelos padres jesuístas nas pastorais estudantis, revoltar-me contra tudo a partir da poesia de João Cabral de Mello Neto e da prosa magistralmente seca de Graciliano Ramos.

O “industrial Ernesto Gomes Maranhão, usineiro em Alagoas, falecido há poucos anos”, reproduzindo literalmente o Diário de Pernambuco, foi o único da família que não esperou o fogo dos engenhos morrer. Ergueu duas portentosas usinas em Alagoas, que moem cana até hoje e produzem açúcar e álcool.

A “srta. Teresa Maranhão”, minha tia-avó mais velha, filha do segundo casamento de meu bisavô, morreu solteira e solitária no quarto do pequeno apartamento que herdou no prédio de conjugados erguido justamente na Rua Geraldo de Andrade, nº 111, bairro do Espinheiro, no Recife. O prédio de conjugados foi erguido no terreno do casarão do coronel Joca Maranhão, quando o resto da herança dele já havia evaporado como o perfume açucarado do mosto dos engenhos.

Pirauá e Concórdia não moem mais. Vicência, Nazaré da Mata e Orobó não são para mim, infelizmente, nem mesmo uma foto na parede. Há esquecimentos que nos fazem lembrar de tudo.

Picture of LUÍS COSTA PINTO

LUÍS COSTA PINTO

Luís Costa Pinto, 55. Jornalista profissional desde 1990. Começou como estagiário no Jornal do Commercio, do Recife. Foi repórter-especial, editor, editor-executivo e chefe de sucursal (Recife e Brasília) de publicações como Veja, Época, Folha de S Paulo, O Globo e Correio Braziliense. Saiu das redações em agosto de 2002 para se dedicar a atividades de consultoria e análise política. Recebeu os prêmios Líbero Badaró e Esso de Jornalismo em 1992. Prêmio Jabuti de livro-reportagem em 1993. Diversos prêmios "Abril" de reportagem. É autor dos livros "Os Fantasmas da Casa da Dinda", "As Duas Mortes de PC Farias" e "Trapaça - Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro" que já tem três volumes lançados. Haverá um 4º e último volume). Também são de sua autoria "O Vendedor de Futuros", um perfil biográfico do empresário Nilton Molina e "O Procurador", livro-reportagem que mergulha nos meandros do Ministério Público e nas ações da PGR durante o período de Jair Bolsonaro (2019-2022) na Presidência da República.

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