É hipocrisia fugir do debate de regulação da mídia. Mas, esperemos 2023.

Trazer à superfície, neste momento, o tema “regulação da mídia” foi um erro estratégico do ex-presidente Lula. Ele é pré-candidato a presidente da República em 2022, é o favorito para vencer a eleição e tem chance de lograr êxito até em turno único caso o pleito se dê em ambiente de normalidade democrática, isonomia e respeito às regras e leis eleitorais. Ataques à liberdade de imprensa, ameaças de retrocessos como imposição de censura e perseguição financeira a veículos de comunicação têm sido ferramentas de assalto à Democracia usadas sem cerimônia por Jair Bolsonaro, por seus cúmplices no ministério, pelos filhos dele e pela horda de figuras repugnantes que o seguem e se nutrem dos buracos que ele abre a marretadas nos muros de contenção da institucionalidade democrática.

Lula errou no timing de reabertura de discussão do tema, pois abriu um flanco para ataques bissextos de velhos adversários instalados na mídia tradicional. À guisa de olhar para os próprios erros, cometidos desde 2014, quando açularam os bivaques de granadeiros e se associaram ao facínora Eduardo Cunha e ao meliante Aécio Neves na construção da avenida por onde desfilaram os golpistas de 2016, do impeachment sem crime de responsabilidade, e seus oportunistas associados em 2018 já travestidos em uniformes de campanha das Forças Armadas, os ventríloquos dos empresários ainda donos de veículos tradicionais reciclaram ataques provectos ao ex-presidente. Dão vezo aos recalques que jamais esconderam. Contudo, o debate é válido, oportuno, necessário e urgente no conjunto de ações para a retomada e reconstrução do Brasil depois de 2022.

Antes de se falar em regular a mídia é necessário regulamentá-la. Ao contrário do que escreve a Folha de S Paulo em editorial publicano na página 2 deste 31 de agosto de 2021, o tema não está pacificado.

É necessário discutir e regulamentar, por exemplo, o controle cruzado de veículos:

É democrático permitir que um mesmo grupo empresarial controle a maior rede de TV aberta, o maior jornal, a maior rádio dedicada a notícias e alavanque seus portais, seus podcasts, as redes sociais de seus jornalistas e profissionais de entretenimento e sua plataforma de streaming usando conteúdo que transita transversalmente entre todos eles? Criando uma sinergia simbiótica de meios, canais, veículos, títulos e personalidades que impede o florescimento de concorrência plural e democrática? Priscas eras, entre os anos 1980 e 1990, as Organizações Globo fizeram isso no Rio de Janeiro e mataram por inanição publicitária concorrentes como Jornal do Brasil e O Dia, produtos editoriais de excelente e inegável qualidade.

É necessário discutir e regulamentar, por exemplo, a produção de conteúdo na área de economia, sobretudo dicas de investimentos ou reportagens de “serviço” para empreendedores, produzidas por empresas de comunicação controladas por corporações que têm um pé (ou os dois), uma mão (ou ambas) e o bolso do outro lado do balcão:

É razoável permitir que o site O Antagonista ou a revista virtual Crusoé fizessem reportagens sobre mercado financeiro, investimentos, mercado etc enquanto eram controladas pelo Empiricus, uma plataforma de investimentos? É crível ler textos sobre “guerra das maquininhas” de cartões, ou contra ou a favor do pix, na Folha de S Paulo ou no UOL, empresas de comunicação que estão sob o guarda-chuva dos negócios do empresário Luís Frias que virou banqueiro e é dono do PagSeguro? É possível crer que a revista Exame pode ser isenta ao tratar de negócios que envolvam o BTG Pactual, banco que a administra? Ou que a revista Veja, controlada pelo empresário Fábio Carvalho em parceria simbiótica com a agência de comunicação e relações públicas FSB seja leal à notícia e aos fatos quando trata de temas econômicos e financeiros que digam respeito aos clientes de Carvalho e da FSB? Nos Estados Unidos, por exemplo, colunistas de investimentos e de assuntos econômicos não podem falar de fundos, ações, grupos ou negócios nos quais invistam – quem os regula é a SEC, a Comissão de Valores Mobiliários de lá. Não seria o caso de discutir uma regulação semelhante aqui?

Nos últimos dez anos o Brasil modernizou seus códigos de processo civil e de processo penal. Alegar “legítima defesa da honra” depois de matar a companheira, por exemplo, deixou de ser atenuante para criminosos. Doca Street, nos anos 1970, foi absolvido em júri popular ao alegar tal “atenuante” bárbara ao assassinar Ângela Diniz. Quando a atriz Carolina Dieckman foi vítima do vazamento criminoso de nudes dela mesma, que tinham por destino o marido, e se viu exposta na Internet, o País foi capaz de modernizar as leis e criminalizar o roubo de conteúdo armazenado em smartphones, computadores etc. A vasta gama de crimes cibernéticos exige atenção e denodo de quem trabalha com legislações, sejam operadores do Direito, sejam legisladores, no sentido de modernizar constantemente o rol de dispositivos legais que contenham e desestimulem o cometimento de crimes. Ou seja, que façam a regulação da sociedade ante os avanços inexoráveis da vida moderna. Todos, em sã consciência, elogiam tais inciativas. Por que não as discutir no âmbito da mídia, da produção e veiculação de conteúdo?

Enfim, o ex-presidente Lula não erra ao querer discutir regulação da mídia. Foi infeliz, no entanto, no momento em que falou o que pensa porque permitiu o sobrevoo dos falcões da mídia tradicional que sempre estão à espreita para enredá-lo em teias destinadas a limitar ideias de vanguarda. Esses falcões, em geral editorialistas e articulistas, formam a “vanguarda do atraso”, como as classificou o ex-ministro da Justiça Fernando Lyra ainda durante o governo de José Sarney em tempos pré-Constituinte.

As atuais composições dos poderes Executivo e Legislativo federais não têm inteligência, preparo ou capacidade para entabular uma discussão decente e independente em torno de uma regulamentação e posterior construção de aparatos regulatórios para os meios de comunicação. Todo esse debate tem de ter por ambiente, ainda, os dispositivos de comunicação pública. Os brasileiros precisam amadurecer o tema ao largo da campanha de 2022 – e não só da campanha presidencial, mas, sobretudo, das campanhas para deputado e senador. Os próximos governo federal e Congresso Nacional devem se debruçar sobre isso a fim de modernizar a sociedade brasileira dotando-a de um sistema transparente e público de regulação da mídia. E a autorregulação tem de estar contida na discussão e no sistema que dela sair.

LUÍS COSTA PINTO

LUÍS COSTA PINTO

Luís Costa Pinto, 52. Jornalista profissional desde 1990. Começou como estagiário no Jornal do Commercio, do Recife. Foi repórter-especial, editor, editor-executivo e chefe de sucursal (Recife e Brasília) de publicações como Veja, Época, Folha de S Paulo, O Globo e Correio Braziliense. Saiu das redações em agosto de 2002 para se dedicar a atividades de consultoria e análise política. Recebeu os prêmios Líbero Badaró e Esso de Jornalismo em 1992. Prêmio Jabuti de livro-reportagem em 1993. Diversos prêmios "Abril" de reportagem. É autor dos livros "Os Fantasmas da Casa da Dinda", "As Duas Mortes de PC Farias" e "Trapaça - Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro" que já tem dois volumes lançados e o volume 3 está em fase de edição.

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