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Sair do Brasil

Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo

Penso que todo mundo sempre quis sair mais do seu país do que de sua sociedade. Vamos para Paris ou New York, mas sentimos falta da comida e das fofocas, esses símbolos de nossos costumes. Morar é bom, mas viver é uma m…! – como confirmava Tom Jobim.

Muitos deram adeus às suas pátrias por motivos trágicos, e os Estados Unidos são prova de uma coletividade cuja população é feita de milhões de netos e filhos de imigrantes – de nativos que por livre vontade ou por motivos dramáticos foram obrigados a deixar sua terra natal. 

No Brasil, este desejo é um paradoxal desabafo, geralmente feito em família ou entre amigos. Ele se amplia e se reduz de acordo com épocas históricas e governos. Nas ditaduras (tanto a de Vargas quanto a militar), muitos deixaram o País por perseguição política. 

Ser obrigado a sair da terra onde se nasceu é “perder o chão”. Equivale a morrer ou ser encarcerado. Não se trata apenas de uma cruel punição política. É um assassinato espiritual decretado com o paradoxo de o morto continuar vivo. Veda-se o direito de participação, mas, de fato, esta interdição bloqueia a vida do condenado, impedindo-o de usufruir das muitas dimensões cruciais de todas as vidas. Como um paradoxo, porém, o banido pode retornar com mais potência, como foi o caso modelar do Conde de Monte Cristo e de outros degredados políticos. Antigamente, era a excomunhão que transformava alguém em um leproso social; hoje, Deus foi substituído pela política como credo. Neste sentido, vale lembrar que o exílio, tanto em Roma quanto na Grécia dos velhos tempos, era mais fatal do que a morte.

Neste Brasil polarizado, surge um “cancelamento” – um exílio interno sentenciado por “democratas”. Uma exclusão repleta de desfaçatez na qual um grupo ou uma pessoa são postos no “gelo” (quem sabe siberiano…), em uma vã tentativa de congelar suas opiniões, razões e realizações. A lista, que, como toda lista, tem sempre dois lados, está em vigência. Nela, o inimigo só se descobre como inimigo quando se vê caluniado ou não reconhecido. 

‘Ser obrigado a sair da terra onde se nasceu é “perder o chão”. Equivale a morrer ou ser encarcerado.’ Foto: Marcelo D. Sants/Framephoto

Não se pode confundir, sem preconceito, o direito a opinar com crime. Só os nazi-fascistas fazem isso, mas o problema é que, no Brasil, há um nazi-fascismo inconsciente. A perversão nazi-fascista-stalinista acontece justamente quando se criminalizam opiniões e a totalidade (o partido, o grupo ou o coletivo) divide o tecido público ao meio. É como mutilar um corpo seccionando o seu lado direito do seu lado esquerdo. 

E o gravíssimo e o absurdo, neste momento, é que quem mais promove tal sectarismo é o presidente da República. O vírus mortal polariza biologicamente e um virulento Jair Bolsonaro polariza moral e ideologicamente. 

Sempre ouvi o “quero ir embora do Brasil” mais como um desabado ou uma fantasia. Mas, nestes tempos de “danação”, tenho testemunhado brasileiros deixando efetivamente o Brasil, e muitos adotando e comprando uma dupla cidadania.

A pandemia tem chamado atenção para a premente necessidade de uma corrente mundial de igualdade, solidariedade e abertura – será que nos esquecemos deste conceito generoso e fundamental? Tal corrente torna o mundo mais justo e humano. Mas o que se constata no Brasil é um reacionário fechamento. 

Há até quem seja contrário à construção de pontes ou de se criar uma rosiana terceira margem do rio. Um ponto capaz de nos desembaraçar das exigências e dos extremos de modo a vê-los em sua natureza sectária que detesta escolhas. Ora, o escolher é, em condições normais, o avatar do discernimento, da prudência e do democrático. 

Não para impedir posicionamentos, mas para evitar o pior que o presidente da República exprime em um absurdo e enlouquecido “Só Deus me tira daqui”. Se as facções invocam igualmente o aval de Deus, o resultado só pode ser o conflito e a destruição das margens e do próprio rio. Um louco não pode justificar a nossa eventual maluquice, ofuscando a nossa lucidez. 

O centro, dizem, é o “conhece-te a ti mesmo”. É a vacina contra os arroubos, as hipocrisias, as tentações proféticas e o tirar vantagem das polarizações. A luta é indispensável, mas não se pode deixar de combinar as armas. 

Sempre ouvi os surtos de onipotência do clássico “sair do Brasil”. Hoje, um presidente irracional, cercado de filhos radicais de direita e por uma maioria de políticos trêfegos, legalistas, populistas, ressentidos e hipócritas, fez com que a fantasia de “ir embora deste país de m…” virasse mantra. Graças, reitero, a um governo errático e a uma lamentável tradição de governar com malandragem, autoritarismo e roubalheira, esse desmedido brigar com o Brasil como se ele fosse uma pessoa física ganhou legitimidade.

Se acusar negativamente o Brasil era parte da própria cultura “culta” brasileira como testemunho de um “pensamento crítico” sobre um país periférico, colonizado, mestiçado, doente e, ao mesmo tempo, governado por uma elite familística “branca” e educada, criticar e negar o Brasil iam juntos. E o pior é que o governo Bolsonaro, com sua hoje comprovada aliança, confirma essa visada antipatriótica. 

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