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SACI POWER NO TERREIRO GLOBAL: Minissérie brasileira Cidade Invisível, sucesso mundial na Netflix

Gabriel Priolli (*)

Cidade Invisível, a série brasileira que a Netflix lançou mundialmente em 5 de fevereiro, é um acontecimento raro no audiovisual do país. Não apenas é uma obra de gênero, algo pouco praticado pelos realizadores brasileiros, mais afeitos aos dramas sociais ou às comédias ligeiras de costumes, como o gênero é a fantasia — quase nunca praticado em produtos adultos. Há mérito, portanto, na simples escolha dos criadores de se aventurar nele. O mérito de buscar novos horizontes, quando a tendência inercial por aqui é a de se ater ao conhecido.

A explicação para essa ousadia reside num nome, o do produtor e diretor Carlos Saldanha, que se formou nos Estados Unidos e lançou-se no mercado de lá com filmes de animação de imenso sucesso, em particular A Era do Gelo, já com três edições, e Rio, com duas. Criador de Cidade Invisível, Saldanha conhece perfeitamente as fórmulas do audiovisual produzido para consumo planetário e sabe da grande aceitação que os filmes de fantasia têm no mercado mundial. Associando-se à Pródigo Filmes, uma das maiores produtoras do Brasil e talvez a mais focada no comércio externo, encontrou as condições ideais para realizar mais um estrondoso blockbuster.

Em menos de três semanas de exibição, a série já se encontra entre as dez mais vistas em 40 países. Liderou o ranking da Netflix por uma semana, nos Estados Unidos, e está em 4º lugar entre as preferidas pelo público brasileiro. Tudo indica que será uma das campeãs mundiais de audiência em 2021 e também nos próximos anos, pois o fim da 1ª temporada antecipa uma provável continuação e o resultado obtido em tão pouco tempo assegura a sua produção.

O fascínio de Cidade Invisível está num elemento riquíssimo da cultura brasileira, paradoxalmente pouco explorado em suas obras de ficção: os seres lendários criados pelo imaginário popular e perpetuados na tradição oral. Temos um vasto contingente deles, associados a uma quantidade de lendas que se conta às centenas. O jornalista e pesquisador mineiro Carlos Felipe, autor de O Grande Livro do Folclore (2002), registra a existência de pelo menos 200 lendas no país. Pela extensão territorial, diversidade regional e formação peculiar nas matrizes indígena, negra e portuguesa, o Brasil talvez seja o maior criador de lendas em todo o mundo.

Na série  — ou na a sua 1ª temporada —, não são necessárias mais do que sete dessas entidades mitológicas, para movimentar uma narrativa de fundo ambiental e recado preservacionista, que se desdobra em sete capítulos de 35 a 40 minutos. Mas o grupo não forma um septeto qualquer. Estão em cena o Saci, a Cuca, o Curupira, a Iara, o Boto-Tucuxi, o Tutu Marambá e ainda o Corpo Seco, um espírito do mal insepulto, que não baixou ao inferno nem pode ir ao céu, e precisa da carne alheia para se materializar e agir. É justamente uma sequência de encarnações desse fantasma que desencadeia as tragédias, mistérios, mortes, alianças e perseguições da trama.

Cidade Invisível é ambientada num Rio de Janeiro intencionalmente irreal, que não é o dos pacotes de turismo, nem é chamado pelo nome mundialmente célebre. É um espaço ambíguo, estranho, onde a cidade, a mata, o mar e os rios são contíguos, e onde parece plausível que seres fantásticos da floresta amazônica e do pampa gaúcho se ocultem sob a pele de moradores de rua ou de personagens de cabaré. Quanto mais a história avança, mais sedutor é esse mundo de fantasia e mais críveis são as peripécias que irrompem na sua estranha normalidade.

Um pouco mais de imaginação dos roteiristas, ou menos reverência às fórmulas norte-americanas, evitaria que Cidade Invisível se embriagasse num coquetel de clichês narrativos, que só diminuem a obra. Pois na coqueteleira temos mais um policial idealista, conflituado entre os deveres profissionais e a dedicação à família. Mais uma assistente devotada ao parceiro, mas com dificuldades de compreender suas motivações e comportamento. Mais uma criança com poderes sensitivos, convertida em agente de maldades. E temos até mesmo uma Liga da Justiça versão patropi, agregando as entidades míticas como se elas fossem os X-Men dos superpoderes e da hiper-sensorialidade nacional.

Alguma contenção nessas banalidades do roteiro, um mínimo de elaboração mais requintada, faria um bem enorme à série, ou à fruição de seus espectadores mais exigentes. Mas o “samba do saci louco”, esse coquetel neoantropofágico da cultura popular mais primitiva com o lixo pop mais óbvio, talvez seja a principal razão do seu sucesso. O produto se mostra perfeitamente ajustado ao gosto preguiçoso e infantilizado das audiências globais, que apreciam repetições narrativas e não gostam de ser incomodadas por complexidades. Mas não decepciona os exigentes, a ponto de afastá-los do televisor.

Cidade Invisível, portanto, é uma boa diversão, realizada com grande apuro técnico, que põe moral brasileira no audiovisual globalizado. Mas não é o novo Macunaíma, nem um passo adiante na cultura brasileira. Por isso espanta, pelo ridículo, a ruidosa polêmica identitária que a série vem suscitando, com alegações de “apropriação cultural” ilegítima das lendas nacionais e de “sub-representação” de grupos étnicos no elenco. Levar tão a sério uma obra despretensiosa de entretenimento, como se ela colocasse questões candentes ao debate político do nosso tempo, mostra quão raso se encontra esse debate e quão tosca pode ser a percepção dos produtos da cultura de massa atual.

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