Por Inácio França e Sérgio Miguel Buarque – Marco Zero Conteúdo
Por ser um dos únicos militares a criticar abertamente a presença maciça de oficiais das Forças Armadas na política, o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza acabou conquistando notoriedade nas redes sociais. Suas postagens praticamente diárias com ácidos comentários e reflexões a respeito dos seus antigos comandantes no Exército que, agora, interferem no ambiente político e assumiram funções tipicamente civis passaram a ser mencionadas por colunistas da mídia do eixo Rio-São Paulo-Brasília.
Depois de assinar artigos em jornais nacionais, Souza foi convidado pelo cientista político João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), a ser o único militar incluído na coletânea Os militares e a crise brasileira. O livro, lançado em meados de março, conta também com textos de acadêmicos e jornalistas com experiência na cobertura das Forças Armadas.
Em seu artigo no livro, Souza aprofundou um tema recorrente em suas postagens: a existência de uma força política coesa e articulada, com atuação dentro e fora dos quartéis, que ele chama de “partido militar” e que põe em risco a hierarquia e a disciplina. O título do texto, “A palavra convence e o exemplo arrasta”, é uma alusão aos riscos embutidos no processo de politização das Forças Armadas, pois as atitudes dos comandantes são seguidas ou imitadas pelos subordinados.
Antes de iniciar a entrevista online para a Marco Zero Conteúdo, o coronel Marcelo Souza, que é recifense e mora na Zona Sul da capital pernambucana, assegurou que jamais será candidato a nenhum cargo público e, se um dia essa possibilidade for ventilada, ele garante que prefere “continuar vendendo as tortas que minha esposa faz”. Ao longo de mais de uma hora de conversa, ficou claro que o título que escolheu para seu artigo também pode definir suas motivações ao contrariar o pensamento hegemônico nos quartéis: com suas palavras, ele tenta convencer os colegas, mas, ao se expor, parece também alimentar a esperança de arrastar os demais a se posicionar contra a militarização da política e a politização dos militares.
Esses foram os principais temas tratados pelo coronel Marcelo Pimentel Jorge de Souza durante a entrevista gravada na quinta-feira, 25 de março:
O partido militar no poder
“As pessoas têm dificuldade em perceber este governo como realmente um governo militar, composto da cabeça, tronco, membros, entranhas até a alma, por militares, mas não um militar aqui e outro ali. Praticamente toda a cúpula das Forças Armadas, e do Exército em particular, estão em todos os lugares da máquina pública. Eu uso o termo partido militar para comparar esse grupo, que é muito coeso e forte por natureza das suas instituições de origem, que tem algumas características autoritárias e pretensões até hegemônicas de poder político.
Há fatos e dados que caracterizam esse grupo como um partido político, ainda que não como um partido formalmente constituído. A ideia central é que esse partido militar vetoriza dois processos que se alimentam entre si e caracterizam o fenômeno da interferência militar na política nacional. O primeiro, muito evidente, é a militarização da política, basta ver a composição do governo e de suas instâncias subordinadas. O outro processo, que é ao mesmo tempo causa e consequência do anterior, é a politização das Forças Armadas e dos próprios militares.
No final do artigo, eu encaminho para uma reflexão que, na minha visão, é a chave para a resolução desse conflito, ou seja, para nos colocar de novo como instituição e como categoria profissional no campo que nos cabe no cenário nacional. A chave é exatamente o título do artigo, pois a palavra convence, mas é o exemplo que arrasta. Ou seja, é uma questão da liderança resolver o problema, pois foi a liderança que criou esse cenário. O caminho do dever para os militares não é a na política, mas sim no exercício de suas atividades profissionais na ativa e também na reserva, porém nunca no palco principal, sempre no fundo, na retaguarda, colaborando com a estabilidade democrática que ajudamos a construir depois do final da ditadura militar em 1985.
É preciso que as pessoas entendam o partido militar, senão vão continuar fazendo oposição ao presidente da República esquecendo que ele não governa sozinho.”
(no vídeo da entrevista, a resposta completa está entre 3:48 e 9:59)
Um partido sem divisões ou correntes
“Não existem divisões internas como se fossem correntes de um partido político. Em partidos políticos majoritariamente consistentes, há quatro ou cinco correntes divergentes, mas geralmente a corrente majoritária acaba assumindo a direção partidária. Nesse partido militar, nem eu nem vocês percebemos divisões ou correntes, até porque a política não fazia parte do cotidiano da minha geração, não era pauta de nossas discussões dentro dos quartéis ou nas áreas de nossa convivência social. Percebíamos que havia companheiros que votavam principalmente em políticos de centro-direita, mas havia também quem votasse em políticos de centro-esquerda e até da esquerda. Isso não era problema.
Passou a ser um problema, coincidentemente, no momento em que fui para a reserva, exatamente em 2018. Foi quando percebemos esse problema com uma politização e uma tendência ideológica clara, na forma do velho partido militar que acompanha a história do Brasil desde a proclamação da República, mais especificamente a partir daqueles conturbados anos 1920 e 1930, quando os quartéis eram locais de disputa política.
Durante a ditadura, predominou um único partido militar.
O que observamos agora é um fenômeno distinto: estamos numa democracia e os militares estão no governo, mas não houve nenhuma ruptura para que isso acontecesse. Estávamos há mais de 30 anos com a política fora dos quartéis, com os militares do lado correto da muralha que separa os militares de governo e as Forças Armadas de política. E, de repente, a sociedade têm a impressão – e não é só impressão, é bastante real – que os militares e as Forças Armadas passam a representar uma determinada corrente política e ideológica à direita e, em termos econômicos, neoliberal.
Não enxergo dentro das Forças Armadas, na ativa e muito menos na reserva, nenhuma divisão. Divisões, aliás, que são muito comuns de serem observadas em exércitos que, ao longo da história, não tiveram tanto protagonismo político. Nos Estados Unidos, por exemplo, temos militares simpáticos aos Democratas, temos os simpáticos aos Republicanos. Ou aos independentes de ocasião. Nem por isso as Forças Armadas se politizam. No Brasil, se dá o contrário: essa politização já acontece dentro dos quartéis, e não me refiro aos quartéis de pedra e cal, mas aos do século XXI, que são os quartéis das redes sociais onde oficiais e comandantes com perfis ativos estão em contato com seus subordinados e com as famílias deles. Com tantos militares estão no governo, a política certamente é um assunto bastante discutido nesses ambientes.
Vou dar um exemplo: outro dia conversava com um tenente dessa geração formada no ano 2015, mostrando a ele que o governo atual está aparelhado por militares. Ele ouviu, prestou atenção e me veio com a seguinte ponderação ‘ué, mas quando era o outro lado, também era assim!’ Bom, isso demonstra claramente como o militar da ativa de hoje vê os seus superiores ou vê as próprias Forças Armadas fazendo parte de um partido. Isso é muito ruim para as Forças Armadas. E é ruim para o próprio governo Bolsonaro, que se sente blindado e se sente dispensado de fazer acordos políticos para governar, pois se sente protegido por esses companheiros de geração.
Nenhuma crise política e econômica vai ser superada – e estamos em crise desde 2016, agravada pelo impeachment – quando as Forças Armadas atuam como partido, pelo contrário isso agrava a situação. Não faz sentido resolver polarizações com as Forças Armadas aderindo em bloco a um dos pólos.
Eu tento, mas não consigo enxergar qual é a visão de Brasil que têm esses meus colegas que resolveram pontuar a política nacional. Uma hora parecem desenvolvimentistas, outra hora parecem neoliberais. E outras horas não parecem nada, apenas que estão ocupando cargos por ocupar, por mero exercício do poder.
(no vídeo da entrevista, a resposta completa está entre 10:03 e 23:42)
A culpa não é do currículo militar
Quando você vê um general sem máscara, o subordinado pensa ‘não vou usar também’.
Não tem nada de rrrado nos crurrículos. Você pode fazer ajustes aqui e ali na maneira como se formam os oficiais do exérfcito ou os praças. O problema não é o currículo, é o exemplo.
Se tornou comum colocar a culpa nos currículos porque, depois do impeachment, o Partido dos Trabalhadores fez uma reunião, uma autocrítica, e depois escreveu que era necessário revisar os currículos das academias militares. Isso foi um rastilho de pólvora nos grupos de militares. Na época eu ainda frequentava os grupos da minha turma. Foi impressionante como isso causou um alarde, como se fossem mexer os currículos, mas eles não tem nada de errado, são currículos normais de qualquer formação de oficial de exército profissional do mundo.
Não se ensina nas academias militares não se ensina que, em 1964, houve uma revolução democrática. Se ensina que houve um golpe e uma ditadura em seguida, talvez não com essas expressões, mas se o aluno fez o ensino médio numa escola civil, ele vai saber o que se passou na história do Brasil.
O problema é depois da academia. Depois que o militar sai da Aman e ingressa na sua carreira como tenente, vai observando os exemplos. E quais são os exemplos de hoje para um jovem tenente, como aquele que me respondeu que o outro lado também fazia? Quando ele olha para cima, vê no topo generais até mesmo da ativa, como o general Pazuello, que era comandante da 12ª Região Militar em Manaus e, no dia seguinte, vira secretário-executivo de um ministério.
O que aquele jovem tenente vai observar que, se quiser chegar a general – porque o topo da carreira para quem se forma na Aman é coronel, mas para chegar a general, além do mérito e antiguidade, tem também o critério pessoal para ser escolhido – vai observar o topo. Quando entende que o topo é político e tem determinado comportamento, como um comportamento negacionista, e vê o general ser desmentido ora pelo presidente, ora pela televisão, aí é que está o problema.
O problema é exemplo. A solução também é pelo exemplo.”
(no vídeo da entrevista, a resposta completa está entre 23:50 e 37:35)
O coronel não está só
“Vamos supor que um jovem oficial, que estuda Direito à noite e é aluno do CPOR durante o dia, esteja incomodado com essa associação ao presidente da República, que é uma figura que não provoca apenas oposição, mas indignação. A única coisa que o oficial da ativa pode e deve fazer é informar e comunicar ao seu superior hierárquico, mas não pode e não deve ir para as redes sociais. Ao longo da minha carreira, nunca me manifestei politicamente.
O superior hierárquico tem a obrigação de informar, até chegar ao comandante do Exército. Eu já fiz isso,. Já informei, através do órgão de comunicação social do Exército, as minhas insatisfações com essa associação. Agora, o militar da reserva pode e deve manifestar-se com qualquer medida do governo ou essa associação.
Não sou sozinho, existem outros militares da reserva que também se manifestam. Vou citar alguns nomes de quem já se manifestou. O brigadeiro Ferolla [tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar] se manifestou de forma muito clara, tanto em relação ao governo quanto à presença em demasia de oficiais em cargos do governo. Também há vários coronéis e tenente-coronéis, alguns eu conheço e outros de quem já ouvi falar, que tem uma posição muito crítica a essa politização faz Forças Armadas.
Também é preciso tomar cuidado com alguns oficiais que aparecem ou parecem ser críticos ao governo, mas especificamente do presidente. Esses oficiais querem parecer críticos, mas eles participaram desse processo, eles ajudaram a politizar as Forças Armadas, ajudaram a militarizar a política, eles construíram essa ideia do militar salvador da pátria em 2018. E alguns deles participaram ativamente do governo, deram o exemplo para seus subordinados, mas não fazem autocríticas ao seu próprio papel”. [Nas redes sociais e numa entrevista para o podcast Roteirices, o coronel cita nominalmente os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e Otávio rego Barros]
O clube militar vem sendo uma voz desestabilizadora. Não é para militar da reserva pregar ditadura, AI-5, isso é uma indignidade, além de falta de conhecimento, uma ignorância. Nossa geração, de 1985 para cá, ajudou a construir essa muralha que deve separar o mundo político do mundo militar. Essa muralha é construída de neutralidade política, de imparcialidade ideológica, isenção funcional, de profissionalismo absoluto, por apartidarismo absoluto e estrita constitucionalidade. Militar da reserva não tem direito de falar em AI-5.”
(no vídeo da entrevista, a resposta completa está entre 37:40 e 52:10)
O ponto de inflexão da politização
O primeiro fato foi a eleição de 2010. Pelo papel da presidenta Dilma na ditadura. Na época eu comandava uma unidade no Mato Grosso, na fronteira, e percebia que a eleição de Dilma provocou certo impacto, principalmente entre o pessoal da reserva, por causa do seu passado em organizações da luta armada.
O segundo foi o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade. Para falar de lei de Anistia, Comissão da Verdade e Justiça de Transição, seria outro capítulo. A geração que ascendia ao generalato em 2010, a maioria promovida pelo presidente Lula, tinha relações de parentescos com aqueles que acabaram constando do relatório da comissão como tendo alguma responsabilidade. Não sou contra a Comissão Nacional da Verdade, mas faço crítica à sua oportunidade, mas ela teria sido mais útil ao Brasil na década de 1990, quando ainda estavam vivos os protagonistas da ocasião. Pelo menos passariam vergonha na fila do supermercado.
Outro fator muito importante foi a participação do Brasil em organizações das Nações Unidas, quando Fernando Henrique Cardoso e o presidente Lula decidiram mudar o status do Brasil no cenário internacional ajudando a construir uma condição de potência subregional junto aos países da África lusa e seus vizinhos no continente. Ao assumir o comando da Minustah, a missão da ONU para a estabilização do Haiti de 2004 a 2014, isso foi muito importante.
Mais um foi a eleição de 2014, pois muitos dos meus colegas não esperavam que a presidente Dilma fosse reeleita. E, por fim, o excesso de participações das Forças Armadas nas missões chamadas GLO (Garantias da Lei e da Ordem) em relação à segurança pública, que colocou o Exército numa vitrina como dono de uma solução de um problema social, que é um problema crônico que surgiu durante a ditadura por n motivos.
É necessário que as Forças Armadas façam sua autocrítica em relação à ditadura, apontando sua responsabilidade institucional e também pessoal. Sem revisarmos nosso papel institucional, não tenho esperanças de que esse processo de politização a curto prazo, pois quando se aproxima do poder e tem intimidade com o poder, se acostuma ao poder.
Ainda que seja figura central e catalizadora, não foi o capitão Bolsonaro quem inventou a politização e nem mesmo a candidatura. Não foi ele quem inventou de, em novembro de 2014, ir numa formatura da Aman e lançar sua candidatura dizendo que iria levar o Brasil para a direita diante de aspirantes. Alguém o levou lá. [O coronel souza faz uma referência ao general Eduardo Villa-Boas].
(no vídeo da entrevista, a resposta completa está a partir de 52:12)