Milly Lacombe
Eu sempre fui fascinada pelo lado esquerdo de um time. Talvez porque canhotos existam em minoria (estudos indicam que eles ficam entre 11% a 13% da população), talvez porque vi Zé Sérgio, o ponta são-paulino jogar e causar enormes estragos com seu pé esquerdo diabólico, talvez porque meu pai manifestasse adoração por Dirceu, que jogou no ataque com Doval e Gil durante os anos em que o Fluminense era chamado de “A máquina Tricolor”.
O fato é que eu, até hoje, acho que é pelo lado esquerdo de um campo que a grande feitiçaria do jogo acontece. Não faz nenhum sentido pensar assim, mas poucas coisas nessa vida fazem sentido e eu gosto de imaginar que se a gente quer encontrar algum sentido para esse absurdo que é existirmos, então precisamos criar, nós mesmos, esse sentido.
Enquanto eu me apaixonava pelo Corinthians (na verdade eu me apaixonei por uma mulher que amava, sobre todas as coisas, o Corinthians) eu via aquele que era chamado por Carlos Alberto Parreira de “o melhor lado esquerdo do mundo” jogar: Kleber, Gil e Ricardinho.
Mas estar à esquerda tem, também, outros significados – e eles me caem bem. Sou do time dos que acreditam que política e futebol devem se misturar e jamais se separar. Há, aliás, pouca coisa que possamos fazer contra isso porque a forma como jogamos e torcemos é sim um ato político. E, vez ou outra, aparece em campo um jogador que carrega em si muitas boas bandeiras.
Sócrates era um desses caras. Gênio com a bola nos pés, genial com a palavra na boca. No livro “Futebol à esquerda”, de Quique Peinado e traduzido no Brasil por Carlos Tranjan e Luiz Reyes Gil, o jornalista Celso Unzelte lembra as palavras de Sócrates: “[O futebol] é um meio extremamente paternalista, autoritário, conservador e reacionário”. Acho que poucos discordarão de Sócrates nesse caso. Sabemos que esse jogo que a gente ama contém em si um arsenal de machismos e, ainda assim, insistimos.
Por isso, quando aparece em campo alguém que encare a bronca de se manifestar para nos resgatar dessa solidão e dessa exclusão, a gente se curva em agradecimentos.
São raros – mais raro do que um canhoto – os futebolistas que se manifestam politicamente se colocando à esquerda. Para cada Sócrates temos uma dúzia de Felipes Melo. Então, quando aparece um revolucionário, os oprimidos e esquecidos se engrandecem.
O livro de Peinado, lançado aqui pela editora Mundareu, é delicioso porque conta a jornada de alguns desses dissidentes da bola. A história desse jogo seria completamente diferente sem que o impacto da cultura da classe trabalhadora inglesa, que mudou a forma como o futebol, até então um esporte de elite, era jogado, inovando com o toque de bola mais coletivo, um jogo menos individualista. Do “dribling game” para o “passing game”, como conta o professor Hilário Franco Junior em seu livro “A dança dos Deuses” (Companhia das Letras).
Sócrates, que chutava com as duas e caia para os dois lados do campo com a mesma dignidade, faria 67 anos nesse 19 de fevereiro. Minha ex-mulher, que amava o Corinthians sobre todas as coisas e também chutava com as duas de forma igualmente poderosa, faria 50 anos em 2021.
Sócrates morreu no dia 4 de dezembro de 2011. Minha ex-mulher morreu no dia 4 de novembro do mesmo ano. Eles não viram o Corinthians campeão Brasileiro naquele ano, mas eu, mesmo em cacos e lidando com a absurda e prematura morte de alguém que amei profundamente, coloquei minha camisa número 8, fui ao estádio e, por eles, torci e chorei. Ser dissidente na vida talvez ajude a gente a lidar com alguns despautérios – a morte prematura de gênios sendo apenas um deles.
Leia o artigo na página do uol aqui: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2021/02/19/futebol-pela-esquerda.htm