Por Luís Costa Pinto
Novo ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto não é um homem para ser subestimado. Alçado ao posto de comandante unificado das três Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica – sem ter pedido a promoção, a trajetória que percorreu na caserna até escalar a torre de comando revelará em breve a alma que habita sob o uniforme, o quepe e o coturno que prefere usar a eventuais ternos cinza-chumbo: a de um escorpião.
Convocado pelo colega Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da cleptocracia instalada por Michel Temer no Palácio do Planalto, Braga Netto demorou um pouco para aceitar o posto de interventor federal no Rio de Janeiro no dia 16 de fevereiro de 2018. Insistia para ter poder absoluto sobre a condução do estado. Temer cedeu, mas disse que não afastaria o governador Luiz Fernando Pezão.
O ex-vice decorativo cometia de pronto uma ilegalidade e torcia para que ninguém percebesse: se Braga Netto seria dono do comando integral do Governo (ou seja, um interventor), a tramitação de reformas constitucionais caras àquela gestão ilegítima da Presidência teria de parar no Congresso.
O Decreto Federal 9.288 foi enviado ao Diário Oficial da União e publicado. Estava consumada, daquela forma, a intervenção federal sem destituição do governador para atender a um capricho de Braga Netto. “Vocês estão prontos para assistir à morte de civis? É o que vai acontecer”, advertiu o general aos presentes àquela pantomima palaciana.
Dias depois, por iniciativa do então presidente da Câmara Rodrigo Maia, o decreto presidencial foi modificado e deu contornos de operação de garantia da Lei e da Ordem (GLO) à intervenção no Rio – submetendo, mesmo que apenas formalmente, os atos de Braga Netto ao governador Pezão. Interventor e governador jamais se falaram por mais de cinco minutos – Braga Netto atuou, no Rio de Janeiro, como um interventor de fato.
A escalada da criminalidade no Rio não mudou em razão da intervenção federal. Os militares comandados por Braga Netto terminaram sendo controlados pelos chefões do tráfico carioca. Mas, as planilhas dos quarteis aceitam tudo e elas produziram dezenas de indicadores edulcorados tentando criar a miragem de um controle que não tinham.
Um crime, contudo, marcou o período de intervenção federal e não foi solucionado nem mesmo nas planilhas de Braga Netto que vomitavam fake news: o assassinato da vareadora Marielle Franco (Psol) e do motorista que a acompanhava numa agenda do mandato, Anderson Gomes.
Os dois foram executados por milícias paramilitares do Rio, provavelmente por tiros desferidos pelo ex-policial militar Ronnie Lessa. Lessa era vizinho de Jair Bolsonaro num condomínio da Barra da Tijuca aonde o presidente brasileiro morava antes de assumir o mandato. O pistoleiro, que gozava da amizade do presidente de seus filhos Flavio, senador, e Carlos, vereador do Rio, era também muito próximo do ex-policial militar e igualmente miliciano Adriano da Nóbrega.
O clã Bolsonaro também tinha Nóbrega como amigo de confiança e de convívio. Flávio Bolsonaro chegou a condecorá-lo por “serviços prestados” quando ele estava preso no Quartel General da PM fluminense. Fuzilado por policiais militares baianos num esconderijo, durante fuga da Justiça, Adriano da Nóbrega levou para o túmulo segredos que a intervenção comandada por Braga Netto poderia ter descoberto. Afinal, o atual ministro da Defesa brasileira é o ex-plenipotenciário interventor do Rio.
O que se conta nas caves da caserna, durante as rodinhas de uísque e cerveja embaladas com pratos de queijo-do-reino adornados por pingos de molhos inglês? Ora, que Braga Netto tem Bolsonaro e seus filhos nas mãos e o verão de 2018 tem tudo a ver com esse arsenal.
O general Fernando Azevedo encerrou a conta-corrente e entregou o quepe ao capitão que era o seu comandante-em-chefe não apenas quando foi tentado a assinar tuítes de repúdio ao Supremo Tribunal Federal e de ameaças a uma eventual volta de Lula à cena política. Bolsonaro inquiriu Azevedo sobre eventuais operações que usassem a Força Nacional e o Exército contra o comando de uma Polícia Militar que, hipoteticamente, na visão presidencial, precisasse de enquadramento. O caso da PM da Bahia, estado governado por Rui Costa, do PT, foi usado na conversa – no dia anterior, policiais militares baianos haviam atirado contra um colega desertor que, em surto psicótico e com o rosto pintado de verde e amarelo (espécie de fantasia do bolsonarismo) invadiu a tiros o Farol da Barra e atirou primeiro a esmo e, depois, contra PMs. O policial em surto morreu em razão dos ferimentos decorrentes do contrafogo.
Já demitido, Azevedo narrou os termos ríspidos de sua conversa com o presidente da República aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutico. O general Edson Pujol entregara o cargo em altercação anterior. Ele despreza Bolsonaro, a quem acha ignorante, grosseiro, inculto e despreparado. Em maio do ano passado, quando o presidente quis entrar nas dependências do Quartel General do Exército, o Forte Apache, no Setor Militar de Brasília, durante manifestação de colorações fascistas em apoio a ele próprio, Pujol impediu. Bolsonaro discursou do lado de fora dos portões do QG militar.
Ante a exposição de motivos feita por Azevedo, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudez não viam condições de ficar em seus cargos. Contudo, desejavam governar o anúncio de suas saídas. Não conseguiram: acertado com Bolsonaro, o general Braga Netto adentrou a reunião com a demissão sumária dos três comandantes militares já prontas – assim, ficaria claro que eles não haviam entregado o cargo numa composição. Numa linguagem golpista, o general, o brigadeiro e o almirante haviam sido depostos de seus comandos.
Houve gritos e esperneios da boca para fora e socos na mesa depois narrados por um dos três ex-comandantes a um amigo civil do Congresso. No olhar do trio, o brilho rútilo da vingança não deixava de avisar: haverá retorno.
O novo ministro da Defesa assume seu cargo como vassalo de um capitão que tem certeza de deter todo o poder nas mãos e não tem juízo algum para medir as consequências de seus atos. Até aqui, Braga Netto o acompanhou – inclusive quando escutou dele a tese hipotética de intervenção no comando de polícias militares insurretas a um controle central – e federal – que inexiste de acordo com a Constituição e com as leis.
Bolsonaro e seus filhos amamentados pelas tetas do erário, sugando leite e mel das rachadinhas cavadas por meio da corrupção de servidores públicos temporários, acalentam ainda o sonho de decretação do Estado de Defesa (artigo 136 da Constituição Federal). Isso não foi dito, com todas as letras e senões, a Braga Netto. Mas, que é um sonho outonal dos Bolsonaro, o Estado de Defesa é. O que ele enseja:
Art. 136º – O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
§ 1º – O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I – restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;
II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
§ 2º – O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.
§ 3º – Na vigência do estado de defesa:
I – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;
II – a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;
III – a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;
IV – é vedada a incomunicabilidade do preso.
§ 4º – Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.
§ 5º – Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.
§ 6º – O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.
§ 7º – Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.
E é o parágrafo 7º do Artigo 136 da CF que conecta os novos ministros da Defesa e da Secretaria de Governo.
Jair Bolsonaro, pérfido e ao mesmo tempo infantil, crê ter amarrado o Congresso Nacional com as cordas de cânhamo do Centrão ao nomear a deputada federal Flávia Arruda (PL-DF) para a pasta aonde a operação política encontra a caneta presidencial e a chave do cofre da União. Delírio e devaneio.
Flávia é inexperiente, mas, por trás dela, age ladinamente o marido – José Roberto Arruda. Ex-senador, líder de Fernando Henrique Cardoso no Congresso, Arruda renunciou ao mandato para não ser cassado em 2000: junto com Antônio Carlos Magalhães, presidente do Senado, quebrara o sigilo do painel eletrônico de votações na cassação do senador Luiz Estêvão. Era uma prova de desprezo pelas regras democráticas e de perfídia política contra um adversário paroquial: queria tripudiar sobre o corpo estendido do inimigo. Em 2008, com direitos políticos restaurados, Arruda venceu a disputa pelo Governo de Brasília e retomou a trajetória de erros – foi preso na Residência Oficial de Águas Claras, saiu de lá algemado. Acusação: as mais variadas formas de corrupção – desde compra de apoio político até enriquecimento ilícito e fraude de licitações públicas.
Tendo reincidido nos crimes contra a ação política, Arruda revelou ter pelas regras do jogo democrático o mesmo desprezo que o general Pujol dizia ter por Jair Bolsonaro. O presidente da República, porém, laçou o futuro de seu governo na crença que as artimanhas políticas de Arruda, levadas a cabo pela mulher Flávia, aplacarão oposições congressuais a ponto de deixar passar um decreto de Estado de Defesa.
E Braga Netto, que estará no vértice dessa operação, atenderá a qual senhor nessa hora decisiva que se avizinha? Ao capitão estulto que vomita ordens desconexas sem pensar e sem pesar as consequências? Ou ao velho colegiado de quatro estrelas, oficiais que trilharam toda uma carreira militar com ele e, com maior ou menor fervor, aderiram de maneira ora astuta demais, ora inadmissivelmente pueril, ao que parecia ser um projeto de poder e rapidamente se converteu numa armadilha de destruição nacional por meio de ataques sub-reptícios às instituições republicanas?
Bolsonaro tenta um autogolpe. As Forças Armadas têm obrigação de engatilhar as armas para um contragolpe. Braga Netto é o homem com o dedo no gatilho.