Marcelo Godoy, de O Estado de S Paulo
Há mais de um ano, um grupo de militares se queixava em Brasília. Uns olhavam para o outro lado da Praça dos Três Poderes e sentiam-se injustiçados. Magistrados e procuradores ganhavam mais do que eles, acumulando salários acima do teto de R$ 39,2 mil. O generais Hamilton Mourão Filho, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto estavam entre os que eram atingidos pela “falta de isonomia“. Muitos queriam ultrapassar o teto, acumulando os proventos de general de exército com os de ministro de Estado. Não lhes bastava o aumento de 41% que os generais obtiveram em meio à crise fiscal do governo e ao congelamento dos salários dos demais funcionários.
Pela regra vigente até uma semana atrás, o general Ramos recebia R$ 6 mil como ministro e R$ 33 mil como general. Outros R$ 27 mil do salário de ministro-chefe da Casa Civil eram retirados pelo chamado abate-teto, a regra que proibia funcionários públicos de ganhar acima do que recebe um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O general Braga Netto (Defesa), que também era atingido pela medida, terá um aumento de R$ 22 mil. Mourão vai ganhar mais R$ 24 mil. Bolsonaro tinha R$ 2 mil cortados pelo teto, pois sua aposentadoria era menor do que a dos generais por ter ido à reserva como capitão.
Em manobra típica do governo Bolsonaro, aquele que faz o contrário do que diz, uma portaria do Ministério da Economia instituiu o que os críticos chamam de “mamata”, recriando “os marajás na Esplanada”. O fenômeno é uma velha praga da gestão pública. Nos anos 1980, ele floresceu na Polícia Militar de São Paulo, com coronéis que ganhavam mais do que o governador. Depois, foi a vez de se descobrir sinecuras e penduricalhos de magistrados e procuradores, como as diárias cruzadas, e as verbas de toda espécie, do auxílio-paletó ao vale-biblioteca. Tudo era desculpa para enriquecer os integrantes de carreiras que sequestravam os recursos do Estado.
A portaria do ministério permite o teto duplo; aplica-se a cada um dos salários, separadamente, a regra do teto em vez de se fazer a soma. A contabilidade criativa de Paulo Guedes forrou os bolsos dos generais da Esplanada, garantindo-lhes mais de R$ 20 mil ao mês. Vai custar R$ 66 milhões ao ano. O Ministério da Economia se transformou em um órgão que economiza na Saúde, na Educação e na Ciência para bancar privilégios a militares e verbas ao Centrão. Congela salários de professores e de policiais, mas permite o reajuste das Forças Armadas. Faz a reforma da previdência dos trabalhadores da iniciativa privada ao mesmo tempo em que mantém a paridade e integralidade de aposentadorias de generais. Assim é em Brasília: tira-se dos pobres para dar aos ricos.
Os privilégios e sinecuras entregues aos generais e coronéis são a face visível da ação do maior partido de sustentação de Bolsonaro: o partido fardado. Como lembram algum dos críticos à atuação desse grupo, como os cientistas políticos Eliezer Rizzo de Oliveira e Ana Penido e o coronel Marcelo Pimentel, a atuação desse partido busca submeter as Forças Armadas aos interesses corporativistas de um bloco de militares. Entre as consequências de sua atuação está a militarização da política no País, a identificação das Forças com uma facção política, dividindo o estabelecimento militar e esgarçando a disciplina e o profissionalismo necessários à defesa nacional.
Eles não são os únicos a condenar o aparelhamento dos ministérios e estatais pela caserna. Oficiais que apoiaram Bolsonaro e que hoje divergem do presidente também passaram a criticar os efeitos da militarização da Esplanada. Sobre a chamada “mamata dos salários”, um deles escreveu: “Imoralidade, deboche com a população, falta de vergonha – R$ 39,2 mil mensais não basta!!! Mais privilégios e desigualdade social. Bando de irresponsáveis viciados em dinheiro público. Isso é inaceitável e precisa ser anulado.” A crítica foi feita pelo principal representante do grupo que resolveu divergir do presidente: o general Carlos Alberto dos Santos Cruz.
Se a imensa maioria dos militares – e os próprios comandantes da três Forças – apoiou o projeto de aumento salariais e de reforma de suas aposentadorias em 2019, bem como os projetos que garantiram investimentos como os do F-39 Gripen e do submarino nuclear, o mesmo não ocorre com a portaria do Ministério da Economia. Vista como uma manobra para beneficiar os generais de Bolsonaro, ela seria mais uma prova, segundo seus críticos, do quão distante os generais de Bolsonaro estão da missão que diziam cumprir no governo. Essa missão – de acordo com os militares ouvidos – não significava encher os próprios bolsos e reclamar dos privilégios alheios, não para mudá-los, mas para poder compartilhar das mesmas sinecuras e mamatas.
Austeridade parece coisa do passado, dos tempos em que o brigadeiro Eduardo Gomes simbolizava a postura impecável do espírito militar, um ethos em que a honra vinha antes da legalidade. O marechal do ar pertencia à geração de oficiais que resolvera salvar a Nação submetida à corrupção das oligarquias da República Velha, provocando instabilidade e crises políticas sem fim entre os anos 1920 e 1960, além de revoltas e indisciplinas nos quartéis. Em 10 de novembro de 1937, os generais Góis Monteiro e Eurico Dutra mandaram cercar o 1.º Regimento de Aviação, pois tinham o então coronel como um oficial suspeito de se opor à ditadura que iam instalar: a do Estado Novo. Indignado com a ação, Eduardo Gomes entregou o comando no dia seguinte.
Na reserva, após ocupar duas vezes o Ministério da Aeronáutica, o brigadeiro envolveu-se na defesa do capitão Sérgio Miranda Carvalho, o Sérgio Macaco, do Para-Sar, que denunciara em 1968 o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier por planejar explodir o gasômetro no Rio para imputar o crime à esquerda. Burnier sempre negou a acusação. Ele fundara o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) e era protegido do então ministro da Aeronáutica, Márcio de Souza Melo. O capitão Sérgio foi cassado pelo regime militar após fazer a denúncia.
Eduardo Gomes enviou cartas aos presidentes Garrastazu Médici e Ernesto Geisel para tentar reverter a “injustiça”, a punição do capitão, que lhe “oprimia o cansado coração”. Era contra o terror, não importava a sua cor. “Só na liberdade se criam valores estáveis para o desenvolvimento e a justiça social.” Não dava entrevistas; nem se entregava a vulgaridades. Católico fervoroso, o brigadeiro é o símbolo de um passado cujas lições os generais do Planalto parecem esquecer. O patrono da Aeronática dividia a metade do salário de marechal do ar com os pobres de Petrópolis, cidade onde nasceu.