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A farsa arrisca vingar como História

Por Luís Costa Pinto

Quando entregou a carta-renúncia ao ministro da Justiça Oscar Pedroso Horta na hora do almoço do dia 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros imaginava estar a jogar como um mestre.

Acuado pelos militares que o apoiaram e pelos cardeais da União Democrática Nacional (UDN), legenda que liderava a direita conservadora (e, à guisa de votos, embarrigara o ex-governador de São Paulo para chegar ao poder nas eleições de 1960), Jânio ameaçava renunciar com a intenção de responder afirmativamente a um apelo de líderes do Congresso, de ministros de Estado e de entidades da sociedade civil para que ficasse.

Com o blefe, pretendia receber carta branca e endossos a determinadas políticas que lhe eram caras como a agenda ultraconservadora de costumes sociais e a liberdade para tocar acordos internacionais heterodoxos em tempos de Guerra Fria. O presidente brasileiro, alinhado à direita, condecorara Che Guevara, reconhecera o regime de Fidel Castro em Cuba, conversava com o embaixador soviético em Brasília e reatara relações diplomáticas com a China.

            Deu tudo errado. Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, recebeu a carta-renúncia das mãos de Pedroso Horta e a leu em plenário. Assinada de próprio punho por Jânio Quadros, ela tinha força de documento.

Renúncias são irrevogáveis e irretratáveis. Vice de Jânio, João Goulart estava na China cumprindo agenda oficial. Ranieri Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados, foi imediatamente empossado como presidente interino. Os militares já haviam mudado de lado: queriam a confirmação de Mazzili no cargo e passaram a trabalhar o impedimento de volta de Jango ao País.

Goulart, do PTB, elegera-se vice de Jânio apesar de integrar outra chapa presidencial. Naquela época, vices eram votados independentemente dos candidatos à Presidência. A solução costurada por próceres da Política como Tancredo Neves, Juscelino Kubitscheck, San Tiago Dantas, dentre outros, foi a submissão de Jango a um Parlamentarismo mal-ajambrado exigido pelos militares. Sete meses depois um plebiscito revogou o regime parlamentarista. Porém, o clima político brasileiro estava envenenado e Jânio reduzira-se a notas de rodapé naquela história.

            Em 2 de dezembro de 2015, com o semblante transtornado pela sede de vingança e tomado pelos recalques que sempre carregou, Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, aceitou um dos pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff ainda que faltassem bases legais para tal.

Confortável com o apoio político que recebia do PSDB de Aécio Neves, o senador mineiro que jamais aceitara a derrota eleitoral para Dilma em 2014, Cunha passou a negociar com Michel Temer, o vice-presidente da República e presidente de seu PMDB, o assalto à cadeira presidencial por atalhos antidemocráticos que violavam a Constituição. A trinca, em que pese os prontuários que já possuíam, mas, escondiam de eleitores e do público em geral com o beneplácito da mídia corporativa, rapidamente consolidou apoios no mercado financeiros e entre ventríloquos de fundos internacionais de investimentos.

            Nas coxas e nas coxias, redigiu-se o roteiro do golpe jurídico/ parlamentar/ classista de 2016 – o impeachment sem crime de responsabilidade.

A ideia do consórcio antidemocrático liderado por PMDB e PSDB, aliados a siglas do Centrão, era acelerar o desmonte do Estado de Bem-Estar Social, a Rede de Proteção Social e a Consolidação das Leis do Trabalho de forma veloz, aprovar reformas draconianas da Previdência Social e do Sistema Tributário, privatizar estatais a toque de caixa e abrir caminho para um candidato egresso da direita liberal em 2018. Deu tudo erado. Apenas parte da agenda “liberal” andou no Congresso.

Guloso e deslumbrado com o poder da caneta presidencial que usurpara, liderando uma cleptocracia e assombrado por fantasmas que dizia ver e ouvir no Palácio da alvorada, Temer conservou residência no Palácio do Jaburu. Em março de 2017, convocou o empresário Joesley Batista, sócio-controlador da holding JBS, para uma sala no subsolo do Jaburu e manteve um diálogo não republicano em que se falou de pagamento de propinas, compra de silêncios e outros temas que fazem corar frades de pedra (como gosta de dizer o ministro do STF Gilmar Mendes).

O vice-presidente que se cria decorativo durante o mandato da titular do cargo, Dilma Roussef, rapidamente se converteu em peça utilitária para o Centrão e negociou a permanência no mandato com a progressiva liberação de verbas e cargos para os ávidos parlamentares de um vasto arco-íris partidário. Eles recebiam benesses palacianas via Diário Oficial, todas as manhãs, e reafirmavam a lealdade venal todas as tardes no Congresso Nacional.

Presa à armadilha de Temer, a direita que se cria liberal ficou no poder. Contudo, foi incapaz de amealhar votos para eleger um presidente de seus quadros em 2018. Embarrigaram Bolsonaro, o estúpido, tosco, pérfido e acanalhado deputado a quem conheciam muito bem e fingiam tê-lo pintado de palatável.

Eleito com a promessa de que seria tutelado pelo doutrinador ultraliberal – e de extrema direita – Paulo Guedes, Bolsonaro fingiu rezar o credo fake dos que se dizem “liberal na economia e conservador nos costumes”. Nem uma coisa, nem outra.

Cretino patológico, desprovido de um projeto nacional, o capitão expulso do Exército nos anos 1980 por má conduta (intentou contra a lei, a ordem e a paz social ao planejar explodir bombas na Vila Militar para impor reajustes aos soldos da soldadesca) revelou-se mero incendiário disposto a qualquer coisa para conservar o bem-estar e os esquemas de rachadinhas da gang familiar que preside. Atropelado pelo destino que impôs ao Brasil a crueldade de tê-lo sentado na cadeira de presidente da República em meio à mais letal pandemia desde a Gripe Espanhola que devastou o mundo entre 1918 e 1920, Bolsonaro e sua incompetência antológica passaram a ser considerados imprestáveis pelo liberalismo sem voto do mercado financeiro brasileiro.

Às 15h do dia 8 de março de 2021 o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, em desespero e tendo por objetivo preservar o ex-juiz Sérgio Moro e seus procuradores amestrados em Curitiba afastados de responsabilizações pelos crimes cometidos pela Lava Jato, tornou sem efeito todas as condenações ilegais perpetradas por Moro contra Lula. No dia seguinte, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski ignoraram a manobra de Fachin, mantiveram a sessão da 2ª Turma do STF e expuseram todo o rol de barbaridades e terror dos lava-jatistas e do ex-juiz. O País foi dormir com a extrema-direita indignada e em siricuticos, o Centrão bêbado e atabalhoado e a esquerda surpresa e reflexiva.

Às 11h da quarta-feira 10 de março de 2021 Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o púlpito do auditório do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, entidade que o catapultou para a política nos anos 1970, plena ditadura militar, e começou a reescrever o curso da História. Ao melhor estilo dos grandes artistas da Política, Lula dominou a cena, distribuiu afagos e recados políticos, acenou para Forças Armadas e polícias estaduais, piscou para empresários e executivos, abraçou a agenda social, sanitária e humanitária e disse ao mundo: voltarei.

Luiz Inácio Lula da Silva está na estrada e a pretensão é regressar ao Palácio do Planalto nos braços do povo. Jânio não conseguiu levar a cabo sua farsa – faltavam-lhe força política, estratégia, apoios fora de seu pequeno grupo pessoal e inteligência emocional. O ex-presidente da República tem tudo o que o professor de português mato-grossense não tinha. A partir de agora um dos desafios vitais de nossa geração passa a ser viver para ver vingar no curso da História o que há 60 anos foi mero blefe farsesco.

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