Nada sobra no filme baseado na obra original de Marcelo Rubens Paiva: nem emoções epiteliais, nem ódios rasteiros, nem dramatizações de fancaria do que foi a tragédia da ditadura
Por Luís Costa Pinto
A explosão de merecidos elogios ao desempenho de Fernanda Torres em “Ainda Estou Aqui” encobre e, talvez, distorça a magistral direção de Walter Salles Jr no filme baseado na obra original homônima de Marcelo Rubens Paiva.
O livro de Marcelo, assim como “Feliz Ano Velho”, foi escrito com a alma de quem viveu todos aqueles momentos em mergulho abissal e no estilo direto, aberto, memorial e singular do autor. Obviamente, o Marcelo Rubens Paiva de “Ainda Estou Aqui” detém uma pena muito mais madura, ainda mais visceral, porém, sem concessões a pecados veniais como sentimentalismos vãos.
No livro, tudo é olhado em profundidade e posto na prateleira à disposição dos leitores com o objetivo de provocar sensações genuínas. Walter Salles Jr conseguiu captar essa atmosfera e transpô-la para a tela.
O desempenho glorioso de Fernanda Torres, merecedora, sim, do prêmio de Melhor Atriz no Oscar, no Globo de Ouro, em Veneza ou em quaisquer outras premiações que vier a disputar, respeita os limites do sentimentalismo fácil. Esse limite perpassa toda a obra. Majestosa, Fernanda pode ter influenciado Salles Jr – e certamente o fez. Mas, seguramente, foi por ele também influenciada.
A câmera não exagera em nada no filme que pode muito bem trazer para cá o primeiro Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A escolha por narrar as passagens mais emotivas do passado feliz da família Paiva por meio de imagens com a textura, a iluminação e as cores das Super 8 é um achado feliz de resultado memorável na edição e na realização.
Fernando Montenegro protagonizando “os maiores oito minutos da História do Cinema”, como escreveu o crítico de um diário inglês, é o lacre dourado e imperial no passaporte do filme que lembra ao Brasil as tragédias particulares de todas as ditaduras – que superam no dia a dia dos cidadãos as marcas deixadas a ferro e fogo na sociedade. Fernanda, a mãe, que esteve muito perto do Oscar de Melhor Atriz por Central do Brasil (dirigida pelo mesmo ‘Waltinho’), merece um desagravo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles recebendo agora um Oscar honorário por sua trajetória biográfica ímpar pelo Cinema, pelo Teatro, pela Televisão, pela contribuição ao ofício de artista que deu ao longo de sua longa carreira.
Ainda que o filme baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva nos traga tantas estatuetas quanto essas, se não for cogitado para o Oscar de Melhor Direção será um desperdício e uma injustiça.
“Ainda Estou Aqui” é, sobretudo, um filme de diretor. A presença sensível de Walter Salles Jr está presente em cada take e grita no conjunto da obra: não tem nada fora de lugar no filme, não há ali sensações epiteliais, ele não deixa aflorar ódios banais ou adjetivação verborrágica. Nem no texto, nem na fotografia, nem na edição.
Oxalá, as portas da Academia se abram desta vez ao Cinema brasileiro e a alguns dos protagonistas geniais que o fazem, como as Fernandas, mãe e filha, e Walter Salles Jr.