Por Luís Costa Pinto
A mídia tradicional brasileira – com seus sobrenomes vetustos e variados, distribuída por plataformas diversas – foi tão derrotada na última eleição presidencial quanto o futuro ex-presidente Jair Bolsonaro.
Associadas ao lava-jatismo a partir de 2014 e ao golpismo franco e aberto de 2016, vitorioso com o impeachment sem crime de responsabilidade da ex-presidente Dilma Rousseff, as empresas que ainda gravitam em torno do sol declinante de um Estado cada vez menos capaz de suportar os caprichos financeiros e os delírios de poder dessa federação corporativa foram incompetentes para deter o monstro por elas açuladas. Daí advieram a detração derrogatória da Política, o surgimento de núcleos aventureiros e antidemocráticos no seio da sociedade e a eleição, em 2018, de uma liderança forjada em afrontas à Constituição e ao Estado de Direito: Bolsonaro, ora em caminhada célere rumo ao ostracismo (ou à cadeia), foi resultado de uma coleção de erros, preconceitos, recalques, deformações ideológicas e dogmas tratados com naturalidade tanto pelos barões da “mídia tradicional brasileira” quanto por seus estafetas.
A premissa se impõe para que seja possível seguir adiante no que vai exposto a partir daqui.
O Brasil possui mais de um smartphone (aparelho de telefonia celular capaz de se conectar à internet, rodar vídeos e permitir conversas com imagem) por habitante. Mais de 90% das unidades habitacionais brasileiras estão conectadas à internet e em 78% delas a conexão é feita por meio desses “telefones celulares inteligentes”. Os brasileiros passam, em média, 5,4 horas por dia usando seus smartphones – é a maior média de uso de tais gadgets em todo o mundo, só igualada pelos habitantes da Indonésia. Em segundo lugar nesse ranking estão os sul-coreanos, com uso médio dos celulares de 5 horas diárias. Todos esses dados são extraídos de pesquisas do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Pouco menos de 79% da população brasileira diz consumir informação e entretenimento por meio dos canais de TV com sinal aberto ou por assinatura (antigamente, dir-se-ia que eram os “canais a cabo”). Nesta seara, a Rede Globo lidera com 31,2% de market share, ou seja, detém mais de 30% da audiência de todo o setor. A TV Record é a vice-líder e tem 11,2% de market share entre as emissoras com sinal aberto, sendo seguida de perto pelo SBT com 9,8%. A Band é a quarta colocada no ranking com 3,4% de share e a TV Brasil, estatal pública federal, a quinta: detém 0,94% de market share.
Os 21% restantes da população brasileira dizem preferir consumir informação e entretenimento por meio de emissoras online em transmissões compartilhadas por streaming. Aí, a plataforma YouTube, gratuita para quem consome seus conteúdos e monetizada para financiar quem os produz, detém 15% da audiência. Os demais 6% são distribuídos entre empresas como Netflix, Globoplay, Amazon Prime, HBO, Disney etc. Esta contabilidade estatística não foi capaz de medir, ainda, o ganho de audiência das plataformas de podcasts. O gênero passou a se tornar crescentemente popular no País ao longo do ano de 2022 e é promissor como ferramenta e plataforma de informação e comunicação.
Há 20 anos, quando venceu pela primeira vez uma eleição presidencial, o metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva encontrou um cenário completamente diverso do atual. Isso fez enorme diferença no curso do processo de tentativa de banimento do Partido dos Trabalhadores do centro da ação política e explica em larga medida a ascensão de uma extrema-direita raivosa, violenta, desumana, incivil.
Se não for rapidamente fotografado, analisado com visão crítica, compreendido e assimilado, o fenômeno de alteração da paisagem midiática e de mudança dos atores centrais vai atrapalhar a governabilidade dos vitoriosos no último dia 30 de outubro.
Caso o processo ocorra em outra direção – ou seja, na correta compreensão da nova paisagem midiática e assimilação dos protagonistas contemporâneos que não têm, necessariamente, nem sobrenomes vetustos, nem variados (alguns sequer integram grandes corporações de mídia) – as eventuais ações diretas e pragmáticas que virão podem conferir segurança à governabilidade e auxiliar na formação de novas lideranças políticas e no aprendizado do exercício da Política por parte de siglas partidárias que não são o PT. O Partido dos Trabalhadores, é preciso reconhecer, sobreviveu ao massacre do qual foi vítima, com diferentes intensidades, desde 2005 – quando se forjou o processo de denúncias distorcidas vocalizadas pelo então presidente do PTB e deputado Roberto Jefferson, redundando na Ação Penal 470, incorretamente popularizada pela alcunha de “mensalão”. Incorreto e impróprio chamar as notícias-crimes da AP 470 de “mensalão” porque não havia pagamento de mesadas a parlamentares. Até mesmo Jefferson voltou atrás nesta denúncia, mas, a mídia tradicional brasileira seguiu com o apelido sintético, confortável e falso.
Empossado na Presidência da República para seu terceiro e, crê-se, derradeiro mandato, Lula dará imensa e concreta lição de superação de diferenças com seus detratores e de amplitude do próprio diapasão político (um dos seus inúmeros diferenciais competitivos no mercado de estadistas contemporâneos) se partir para auxiliar pragmaticamente a construção de um novo ecossistema midiático nacional usando a força da figura presidencial e as ferramentas de Estado para mudar tudo no panorama da comunicação pública.
Hoje, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) é a grande janela midiática nas mãos do governo federal. Ela integra a TV Brasil, a TV Brasil Play (via YouTube, sem monetização), a Agência Brasil, a Rádio MEC, a Rádio Nacional e a Rede Nacional de Comunicação Pública.
Criada em 2007 no início do segundo mandato do próprio petista a partir da boa ideia (à época) de reunir sob um único guarda-chuva os canais da Radiobrás (TVs e rádios) e da Fundação Roquette Pinto (TVs e rádios educativas federais), a EBC ainda se estruturava em 2016 quando foi violentamente atropelada por atos ilegítimos e intervencionistas saídos do gabinete pessoal de Michel Temer na esteira dos primeiros dias e ocupação do Palácio do Planalto depois do impeachment sem crime de responsabilidade.
Aparelhada por enfants gâtés de Temer e de seu lugar-tenente naquele processo golpista, Moreira Franco, a EBC terminou militarizada e devastada no curso dos trágicos anos de Bolsonaro à frente do governo federal.
A Empresa Brasil de Comunicação está no rol de estatais que o atual grupo (ou bando?) governamental deseja privatizar. É essencial incluir um decreto ou portaria de retirada da EBC desta lista de execução sumária dentre os textos do “revogaço” que Lula irá fazer nos primeiros dias do novo mandato. Feito isso, ao trabalho porque o tempo será curto e as tarefas são hercúleas:
- Uma “nova EBC” não deve priorizar a busca por ampliação da audiência na TV aberta ou no dial comercial das rádios. O segredo do sucesso da incorporação de relevância à empresa está no streaming, na disseminação de seu sinal e de seus programas pelas redes sociais por diversas plataformas – sobretudo YouTube, Tik Tok, Kwai e Instagram – e na exploração de novos formatos como podcasts e, claro, minidocs e webdocs.
- Esta “nova EBC” tem de ter uma governança pública – e não estatal. Não é e nem pode ser encarada como sendo empresa de governo. Mas, sim, do Estado brasileiro e estando a serviço da população. A Secretaria de Imprensa do Palácio do Planalto é quem cuida da comunicação pessoal do presidente. Este princípio republicano, lógico, óbvio e ululante, não só foi desrespeitado como foi pervertido e posto de ponta-cabeça nestes anos desastrosos de Bolsonaro. Com as ferramentas de redes sociais contemporâneas e à disposição da equipe presidencial – que soube utilizá-las absurdamente bem no período de entrincheiramento e resistência aos golpes antidemocráticos que vivemos e vencemos, e depois, na última campanha eleitoral – não será difícil nem custoso operar tal separação entre Igreja (Comunicação Pública) e Estado (o governo em si, a imagem presidencial). O Conselho Curador da “nova EBC”, estruturado sob bases rígidas de governança pública, terá de saber conduzir o diálogo institucional e interno para que a operação rotineira dos canais e plataformas da empresa não se convertam em arsenais e artilharia contra ou a favor do governo – nem do que estará no Palácio do Planalto até 2026, nem dos que virão depois. O compromisso tem de ser com a informação, com sua excelência, o fato.
- É preciso internalizar a percepção de que não há mais “formadores de opinião” na mídia – nem nas empresas públicas, nem nas corporações privadas. O dever de quem opera com comunicação social é entregar fatos, disponibilizar análises – divergentes, de preferência – e deixar que o público conclua por si. Os veículos, canais e plataformas públicas têm a missão de orientar o telespectador, o ouvinte, o leitor, acerca das maneiras que eles dispõem para ampliar seus espectros de informação. Jamais, jamais, dar vezo à arrogância de quem quer “formar a opinião” do público. Essa deformação sempre esteve na raiz da discriminação enfrentada por Lula em específico, pelo PT de forma mais ampla e por políticos em geral, com os “analistas” da mídia tradicional brasileira.
- Neste novo cenário, quando a diversidade de produções, sotaques, visões e origens se impõe para ampliar e diversificar a oferta de conteúdo, faz-se mister e central cuidar da curadoria dos produtos de mídia e comunicação que uma empresa pública irá disponibilizar para sua audiência. O crivo e a clava dos curadores têm de ser exemplarmente fundamentados, embasados, dinâmicos, diversos, precisos e democráticos. E não se pode correr o risco de deixar passar pelas redes da peneira nada que seja capaz de atentar contra os valores da Democracia, do Estado de Direito, da Igualdade de gênero, etnia, religião e de tantas coisas mais que se fazem presentes e povoam as preocupações corretas de um grupo que reassumiu o comando do País sabendo pôr diversidades em diálogo e em conexão.
- Uma “nova EBC” não pode encarar a Comunicação Pública exclusivamente como a tarefa – muitas vezes repetitiva e enfadonha – de mimetizar programas jornalísticos que emulem o que já é feito na mídia comercial e privada. Aí, vira imitação. Sem os recursos tecnológicos das empresas privadas, o resultado é ruim. Sendo ruim, a audiência cai e abrem-se as janelas para as avaliações derrogatórias e se alimenta, assim, o ciclo vicioso de detração das empresas públicas. É necessário mudar! E mudar tudo – até mesmo a forma e os formatos de se dar notícia e de se fazer análise. Diversas empresas que habitam o espectro daquilo que chamo de “mídia digital independente” – ICL- Instituto Conhecimento Liberta, TV Democracia, TV 247, TV Fórum, Metrópoles, Conjur, Poder360, Sul21, DCM, Opera Mundi, Plataforma Brasília, O Cafezinho, GGN, Jus.com.br, TheIntercept, Mídia Ninja, Brasil de Fato, Agência Pública, Marco Zero Conteúdo e tantas outras empresas mais (corro, já, o risco da omissão de muitos) – produzem conteúdo relevante, diverso e de qualidade. Por que não incorporar essas produções, e muitas outras, de inúmeras outras empresas que aceitarem fazê-lo, mediante acordos de cooperação com a Empresa Brasil de Comunicação? Necessário encarar isso como via de mão dupla – produções da EBC sendo disseminadas a partir dessas plataformas parceiras também. E ir além: faz-se jornalismo, dos bons, por meio de webséries, documentários, documentários ficcionais, podcasts, radionovelas!… Há produtoras independentes espalhadas por todo o Brasil em busca de plataformas que deem curso a esses esforços pungentes de produção em busca de viabilidade capaz de alçá-las a novos e mais vigorosos voos. A “nova EBC” terá de encarar o desafio de formatar um modelo que contemple tais produções independentes, agregando até parceiros comerciais para isso. O regramento jurídico que impede publicidade comercial nas redes públicas é omisso quanto a tais parcerias, até porque elas não existiam quando as normas em vigor foram feitas, e isso é uma boa notícia: por que seguir impedindo tais parcerias se elas podem ser incorporadas com o objetivo de melhorar a qualidade das produções e diversificar os sotaques e os formatos da disseminação de conteúdos de qualidade?
A extrema-direita obtusa, violenta, ignorante e obscurantista foi cevada por dentro e a partir das novas plataformas de comunicação e das redes sociais. Tanto aqui, como testemunhamos, como nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Itália, na Europa em geral. A assombrosa rede de disseminação de mentiras e de desinformação deliberada nutriu a ignorância servindo-se dela mesma – mas, de forma estruturada e corporativa. É inconcebível que a ascensão de um líder popular, democrático e formado a partir dos valores humanistas corretos como Lula, deixe passar a oportunidade de fomentar uma estrutura de comunicação pública destinada a falar as coisas certas sob os prismas corretos.
Reinstitucionalizar, reordenar, reconstruir e restaurar o Estado brasileiro é um desafio do novo governo para os próximos quatro anos. É preciso reencontrar em meio às ruínas do passado que derrotamos nas urnas e que temos obrigação de levar às barras dos tribunais para o inescapável acerto de contas com a Justiça, as ferramentas para rapidamente o Brasil voltar a consolidar as combalidas instituições republicanas, olhar o futuro, entregar o que era esperança na campanha e tem de se converter em realidade no exercício do poder e impedir novos retrocessos como o processo reacionário instalado no Brasil entre 2016 e 2022.
Empresas públicas de comunicação têm a missão de realizar curadoria de conteúdos e de se fazerem presentes de forma relevante no streaming. Esse é um caminho possível, palpável e que se descortina à nossa frente. É preciso ter disposição para trilhá-lo.